segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Ladrão por ladrão…

 

(Imagem: Internet.)

Uma das personagens mais infames e execradas da história da Amazônia brasileira foi Sir Henry Wickham (1846-1928), um faz-tudo inglês sobre o qual o jornalista Joe Jackson escreveu um livro, publicado no Brasil com o sugestivo título de O Ladrão no Fim do Mundo (Objetiva, 2011).
Ladrão? Sim, senhoras e senhores. Ladrão. Mas também biopirata, contrabandista, vagabundo, herói do Império… a depender do ponto de vista.
“‘Que foi que ele roubou? Que foi que ele fez?’ Os brotos responderam todos de uma só vez…”
Não, não, não, não. O malandro do Wickham não roubou um coração nem uma joia pendurada num cordão; seu roubo foi de muito maior monta: ele contrabandeou para a Inglaterra sementes de seringueira (Hevea brasiliensis), que foram cultivadas e melhoradas nos laboratórios botânicos de Sua Majestade.
Em sua perambulação pelo mundo, Wickham chegou à cidade paraense de Santarém em 1871, onde morou por alguns anos, tentando cultivar seringueiras. Encontrou apoio na comunidade de norte-americanos, que era numerosa e importante na região. Com certeza ele se sentiu em casa…
Muita gente não sabe que os estadunidenses confederados que emigraram para o Brasil após a derrota na Guerra Civil Americana (1861-1865) não se estabeleceram apenas no interior de São Paulo, onde seus descendentes ainda hoje fazem Festas Confederadas, com trajes e comidas da época, e hasteiam bandeiras da Dixieland; muitos americanos se fixaram em outras partes do País, como em Santarém, no Pará. Algumas famílias e indivíduos ficaram pouco tempo em Santarém e retornaram aos Estados Unidos, mas várias famílias americanas se estabeleceram definitivamente na região Oeste do Pará, deixando seus sobrenomes na antroponímia local, e parte de seus descendentes paraenses ainda se orgulha de sua origem confederada.
Mas voltemos a Henry Wickham. Em 1876, possivelmente com a ajuda de gente da região, Wickham juntou, empacotou e acondicionou cuidadosamente em cestos cerca de 70 mil sementes de seringueira, enganou os agentes da fiscalização em Belém do Pará e levou as sementes para a Inglaterra. As mudas conseguidas a partir dessas sementes foram plantadas em possessões britânicas no Sudeste Asiático, e essas seringueiras de além-mar, sem as pragas e outros empecilhos naturais amazônicos, adaptaram-se muito bem lá, produziram muito e causaram grande impacto no mercado internacional de látex. Era o fim do monopólio sul-americano da borracha, e dos efeitos dessa débâcle a Amazônia brasileira demorou muito a se recuperar – se é que se recuperou…
Anos depois, sua contribuição para o Império Britânico seria, enfim, reconhecida, e graças a isso Wickham seria armado cavaleiro de Sua Majestade. De vagabundo a gentleman, de biopirata a Sir!
Mas este artiguinho não se acaba aqui. A história humana é complicada, a brasileira é ainda mais, e as coisas nunca são tão simples como parecem… Passemos da borracha para o café.
Ainda me lembro das aulas de história do antigo ginásio. Aprendi então que o cultivo do café foi introduzido no Brasil, mais precisamente na então província do Grão-Pará, por Francisco de Melo Palheta (1670-1750), militar luso-brasileiro nascido em Belém. Palheta, numa missão para restabelecer a fronteira com a Guiana Francesa, foi até Caiena, onde conseguiu, clandestinamente, sementes e mudas de cafeeiro, que ele plantou e cultivou em suas terras na cidade paraense de Vigia.
Segundo consta, as sementes e mudas foram um presente da esposa do governador de Caiena… Qual terá sido a ligação entre Palheta e a esposa do governador? Não o sei, apenas suponho. Já nos dias atuais não adiantaria esconder o affair, pois uma hora ou outra ficaríamos sabendo de tudo através da imprensa de fofocas.
O cultivo do café era assunto de Estado na França, na Holanda e na Inglaterra, que exerciam grande controle de suas colônias para evitar o contrabando de suas sementes e mudas para os concorrentes. Mas os franceses não esperavam que a esposa do governador de Caiena fosse generosa além da conta com o enviado da Coroa Portuguesa, não menos ladrão de “commodities” do que outros antes e depois dele, incluindo-se na longa lista nosso conhecido Wickham.
O resto é história. A cultura do café espalhou-se pelo País, e o “ouro negro” dominou nossa economia até o século XX. No Império e na República, o Brasil ficou sob o domínio do Rei Café por muito tempo.
Pois é isto: ora roubando aqui, ora sendo roubado ali, assim também se fez a história do Brasil.
Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Leia e curta também no WordPress.

Nenhum comentário:

Postar um comentário