(Imagem: Internet.)
Uma das personagens mais infames e execradas da história da Amazônia brasileira foi Sir
Henry Wickham (1846-1928), um faz-tudo inglês sobre o qual o jornalista
Joe Jackson escreveu um livro, publicado no Brasil com o sugestivo
título de O Ladrão no Fim do Mundo (Objetiva, 2011).
Ladrão?
Sim, senhoras e senhores. Ladrão. Mas também biopirata, contrabandista,
vagabundo, herói do Império… a depender do ponto de vista.
“‘Que foi que ele roubou? Que foi que ele fez?’ Os brotos responderam todos de uma só vez…”
Não,
não, não, não. O malandro do Wickham não roubou um coração nem uma joia
pendurada num cordão; seu roubo foi de muito maior monta: ele
contrabandeou para a Inglaterra sementes de seringueira (Hevea brasiliensis), que foram cultivadas e melhoradas nos laboratórios botânicos de Sua Majestade.
Em
sua perambulação pelo mundo, Wickham chegou à cidade paraense de
Santarém em 1871, onde morou por alguns anos, tentando cultivar
seringueiras. Encontrou apoio na comunidade de norte-americanos, que era
numerosa e importante na região. Com certeza ele se sentiu em casa…
Muita
gente não sabe que os estadunidenses confederados que emigraram para o
Brasil após a derrota na Guerra Civil Americana (1861-1865) não se
estabeleceram apenas no interior de São Paulo, onde seus descendentes
ainda hoje fazem Festas Confederadas, com trajes e comidas da época, e
hasteiam bandeiras da Dixieland; muitos americanos se fixaram em outras
partes do País, como em Santarém, no Pará. Algumas famílias e indivíduos
ficaram pouco tempo em Santarém e retornaram aos Estados Unidos, mas
várias famílias americanas se estabeleceram definitivamente na região
Oeste do Pará, deixando seus sobrenomes na antroponímia local, e parte
de seus descendentes paraenses ainda se orgulha de sua origem
confederada.
Mas voltemos a Henry Wickham. Em 1876, possivelmente com
a ajuda de gente da região, Wickham juntou, empacotou e acondicionou
cuidadosamente em cestos cerca de 70 mil sementes de seringueira,
enganou os agentes da fiscalização em Belém do Pará e levou as sementes
para a Inglaterra. As mudas conseguidas a partir dessas sementes foram
plantadas em possessões britânicas no Sudeste Asiático, e essas
seringueiras de além-mar, sem as pragas e outros empecilhos naturais
amazônicos, adaptaram-se muito bem lá, produziram muito e causaram
grande impacto no mercado internacional de látex. Era o fim do monopólio
sul-americano da borracha, e dos efeitos dessa débâcle a Amazônia brasileira demorou muito a se recuperar – se é que se recuperou…
Anos
depois, sua contribuição para o Império Britânico seria, enfim,
reconhecida, e graças a isso Wickham seria armado cavaleiro de Sua
Majestade. De vagabundo a gentleman, de biopirata a Sir!
Mas
este artiguinho não se acaba aqui. A história humana é complicada, a
brasileira é ainda mais, e as coisas nunca são tão simples como parecem…
Passemos da borracha para o café.
Ainda me lembro das aulas de
história do antigo ginásio. Aprendi então que o cultivo do café foi
introduzido no Brasil, mais precisamente na então província do
Grão-Pará, por Francisco de Melo Palheta (1670-1750), militar
luso-brasileiro nascido em Belém. Palheta, numa missão para restabelecer
a fronteira com a Guiana Francesa, foi até Caiena, onde conseguiu,
clandestinamente, sementes e mudas de cafeeiro, que ele plantou e
cultivou em suas terras na cidade paraense de Vigia.
Segundo consta,
as sementes e mudas foram um presente da esposa do governador de Caiena…
Qual terá sido a ligação entre Palheta e a esposa do governador? Não o
sei, apenas suponho. Já nos dias atuais não adiantaria esconder o affair, pois uma hora ou outra ficaríamos sabendo de tudo através da imprensa de fofocas.
O
cultivo do café era assunto de Estado na França, na Holanda e na
Inglaterra, que exerciam grande controle de suas colônias para evitar o
contrabando de suas sementes e mudas para os concorrentes. Mas os
franceses não esperavam que a esposa do governador de Caiena fosse
generosa além da conta com o enviado da Coroa Portuguesa, não menos
ladrão de “commodities” do que outros antes e depois dele, incluindo-se
na longa lista nosso conhecido Wickham.
O resto é história. A cultura
do café espalhou-se pelo País, e o “ouro negro” dominou nossa economia
até o século XX. No Império e na República, o Brasil ficou sob o domínio
do Rei Café por muito tempo.
Pois é isto: ora roubando aqui, ora sendo roubado ali, assim também se fez a história do Brasil.
Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.
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