quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Controle lexical... absoluto!

(Imagem: Wikipédia.)

Há quem defenda que é incorreto dizer "americano" ou "norte-americano" para se referir aos Estados Unidos e seus cidadãos ou coisas, pois haitianos, panamenhos e brasileiros também são americanos, e canadenses e mexicanos, além de americanos, são também norte-americanos. Segundo essas pessoas, a única forma correta é "estadunidense".
Defensores mais virulentos da palavra "estadunidense" até se ofendem quando topam com os termos “americano” ou “norte-americano” usados nesse sentido, chegando até a destratar quem os empregue assim. Dizem que é ofensivo aos demais povos americanos e norte-americanos o uso desses termos como sinônimos de “estadunidense”.
Aliás, parece que o uso de “estadunidense” vai firmando-se como quase que exclusivo do pensamento de esquerda, enquanto o uso dos demais termos vai caracterizando-se como etiqueta da direita ou dos chamados isentões.
Trata-se de opinião, contra a qual nada tenho, desde que não se queira impor tal uso às outras pessoas; seria ótimo não ter de escolher entre mais de um termo, mas o uso atual de nossa língua consagra as formas "americano", "norte-americano", "estadunidense" e "ianque" como sinônimas em várias situações, não havendo erro nenhum em chamar um cidadão dos EUA de "americano" ou "norte-americano", desde que o contexto o permita.
Mas nem tudo são flores. Quando há tantos termos listados como politicamente incorretos, ofensivos, indesejáveis ou palavras-gatilhos para o que quer que seja, é preciso policiar-se o tempo todo para manter um discurso semântica e lexicalmente coerente e não deixar escapar uma palavrinha sequer que destoe ideologicamente das demais.
Fazer isso por escrito é fácil, pois sempre se pode revisar o texto e substituir os termos indesejados. Já falar ao vivo na TV ou na Internet são outros quinhentos, pois às vezes o termo nos escapa e nem o percebemos.
Foi o que ocorreu há alguns dias com certo intelectual, escritor e comentarista político progressista, que defende o uso exclusivo de “estadunidense” e rejeita as demais formas, que ele considera inadequadas pelos motivos citados acima. Comentando no YouTube sobre a influência política e cultural dos EUA na América Latina e no Brasil, ele disse algo assim:
“... a gente cresceu vendo na TV filmes ESTADUNIDENSES em que os AMERICANOS...”
Pois é... Escapuliu-lhe um “americanos” em lugar de “estadunidenses”. Nada errado aí, nem lexical nem gramaticalmente. E acho que nem ele mesmo percebeu, naquele momento, que usou um termo que ele mesmo considera inadequado e busca evitar. Acontece nas melhores famílias.
Quase todos os países têm um nome oficial, que consta em sua constituição e outros documentos. A França é "République Française", a Itália é "Repubblica Italiana", Portugal é "República Portuguesa", a Bolívia é "Estado Plurinacional de Bolivia"... E vários países têm ou tiveram a locução "Estados Unidos" a compor seus nomes oficiais: até 1967, o Brasil se chamou "Estados Unidos do Brasil"; até 1953, a Venezuela se chamou "Estados Unidos de Venezuela"; a Colômbia e a Indonésia também já foram "Estados Unidos"... e o México ainda se chama "Estados Unidos Mexicanos" – apesar de nenhum desses países ter "estadunidense" como gentílico. Por que, então, os estadunidenses não podem referir-se a seu país como América e a si como americanos se o nome oficial de seu país é "United States of America"?
E pode haver outras complicações no mundo dos gentílicos: afinal, o termo "europeu" pode continuar a ser usado em relação a qualquer país da Europa ou apenas se refere aos que compõem a União Europeia? Ucranianos, suíços, noruegueses e sérvios também são europeus? Por que não se referir aos cidadãos da União Europeia como "euro-unionenses", por exemplo?
Toda essa discussão é uma bizarra bizantinice.
Lembro-me de ter aprendido, na escola, a evitar a repetição de termos para que o texto não se torne maçante ou enfadonho; há mesmo quem goste de usar sinônimos para ostentar erudição ou opulência lexical. Mas nem sempre se pode lançar mão da sinonímia, pois ou os termos são insubstituíveis ou são técnicos demais, sem falar em artigos, verbos de ligação, preposições e outros elementos gramaticais cuja repetição é incontornável.
Tenho, pois, a tendência de evitar certas repetições; por isso, conforme a situação, e se necessário e possível, uso num mesmo texto as palavras “americano”, “norte-americano”, estadunidense”, “ianque” e outras, se as há, como termos sinônimos e alusivos aos EUA, sem levar em conta a ideia de que o único termo aceitável e possível seja “estadunidense” ou outro. Meu oráculo, guru e mito é o dicionário.
Se você acha que só um termo é possível, aceitável, conveniente e politicamente correto para referir-se a um grupo social, a uma coisa, a um processo ou a uma situação — não há problema nenhum nisso. Mas sugiro treinar o controle lexical para evitar o deslize de usar, sem o querer, um termo inadequado a suas convicções.
Policie-se o tempo todo; perscrute cada palavra na mente antes de falar e enquanto fala; fale pausadamente, deixando sair as sílabas bem devagar... e assim talvez você consiga evitar que, vez ou outra, escape uma palavrinha gentilicamente incorreta.
Use apenas seu termo favorito, pois, riscando de seu glossário os sinônimos dele, e quem sabe se, daqui a alguns anos, sua palavra favorita não emplacará como a única?
O preço da palavra politicamente adequada e correta é a eterna vigilância do (próprio) vocabulário. E talvez, ao fim e ao cabo, o resultado seja termos um vocabulário cada vez mais restrito e uma fala sem figuras de linguagem nem sinônimos. Este parece ser, aliás, o desejo dos fiscais da palavra alheia.
Bem-vindos à era da pós-sinonímia.