sábado, 19 de março de 2022

A Peste [Albert Camus]

"Do morro escuro subiram os primeiros foguetes dos festejos oficiais. A cidade saudou-os com uma longa e surda exclamação. Cottard, Tarrou, aqueles e aquela que Rieux tinha amado e perdido, todos, mortos ou culpados, estavam esquecidos. O velho tinha razão, os homens eram sempre os mesmos. Mas essa era a sua força e a sua inocência, e era aqui que Rieux, acima de toda a dor, sentia que se juntava a eles. Em meio aos gritos que redobravam de força e de duração, que repercutiam longamente junto do terraço, à medida que as chuvas multicores se elevavam mais numerosas no céu, o Dr. Rieux decidiu, então, redigir esta narrativa, que termina aqui, para não ser daqueles que se calam, para depor a favor dessas vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar.
"Mas ele sabia, porém, que esta crônica não podia ser a da vitória definitiva. Podia, apenas, ser o testemunho do que tinha sido necessário realizar e que, sem dúvida, deveriam realizar ainda, contra o terror e a sua arma infatigável, a despeito das feridas pessoais, todos os homens que, não podendo ser santos e recusando-se a admitir os flagelos, se esforçam no entanto por ser médicos.
"Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz."

Trecho final de A PESTE (La Peste) de Albert Camus. Tradução de Valerie Rumjanek. 23. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.

Terminei de lê-lo na madrugada de 18 para 19 de março de 2022, mais de dois anos após o início da pandemia do novo coronavírus; completando dois anos de (semi)quarentena e trabalho domiciliar, saindo de casa apenas quando extremamente necessário e tendo incorporado a máscara como acessório indispensável. E em preparação para o retorno ao trabalho presencial.
Que leitura funesta para tempos de pandemia de covid-19! — dirão alguns. E coincidindo com o fim da pandemia... — dirão outros.
Fim da pandemia? Chegamos mesmo ao fim da peste? A julgar pelas estatísticas diárias...
E, afinal, de que peste estamos mesmo falando?

Santarém, Pará, 19 de março de 2022.