terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Reinventando a roda

(Foto: Wikipédia.)

Há alguns anos, certo programa de TV "made in Manhattan" louvou um professor universitário norte-americano que defende a "procrastinação da criatividade" no mundo corporativo: ao invés de se "precrastinar" tudo, fazendo as coisas logo para se livrar delas e ganhar tempo ("time is money!"), ele propõe que se dê tempo ao exercício da criatividade para aproveitá-la melhor.
Muito interessante... mas nenhuma novidade!
Explico-me:
Há uns 2.000 anos, em sua célebre "Epístola aos Pisões", mais conhecida como "Arte Poética", o romano Quinto Horácio Flaco já falava sobre isso, ao criticar obras literárias feitas apressadamente e com pouco conteúdo artístico.
Horácio condenava os poetas preguiçosos, que publicavam suas obras sem passá-las por minuciosa e demorada revisão, e sugeria que um poema só poderia ser dado a público depois de apurado e polido longamente até não se encontrar nada a desaboná-lo.
Ou seja: a obra literária, assim como as outras peças artísticas, deve ser longamente pensada, limada, aparada, rasurada, revisada até que esteja pronta, sem nada para tirar ou acrescentar. E diz mais Horácio: sugere que a obra seja submetida a crítico de confiança e fique em repouso por oito (!) anos até ser publicada ou descartada.
As coisas estão um pouco diferentes de como eram na Roma do século I d.C.: hoje ninguém espera oito anos para publicar um livro, a não ser que não encontre editor (e as possibilidades atuais de editar textos em formato digital e publicá-los na Internet resolvem o problema dos que não se apegam ao livro impresso); mas ainda se precisa de tempo para fazer bem uma tarefa, seja ela qual for — seja um trabalho manual ou intelectual.
Nada mudou: desde um cortador de pedra ou carpinteiro egípcio até os projetistas de carros, aviões ou telefones celulares de hoje, passando pelos poetas, escultores, pintores, médicos, professores e advogados, aquilo de que um profissional mais precisa é de TEMPO.
É o desconhecimento do passado que leva a surgir, de vez em quando, gente a reinventar a roda ou redescobrir a América, propondo como novidades coisas antigas ou pouco conhecidas.
Resumiu tudo isso Fernando Pessoa, quando disse:
"E por isso a sua glória / É justa auréola dada / Por uma luz emprestada".

Gênero ministerial

No Brasil não faltam pessoas capacitadas, com formação em áreas diversas, para assumir o Ministério da Saúde e outras pastas. E as mulheres são metade ou mais desse grupo, como o demonstram as estatísticas.
Assim, nada há de extraordinário na nomeação de uma ministra da Saúde, a não ser o ineditismo do fato.
Mas não se venha dizer que o Ministério da Saúde precisa da SENSIBILIDADE de uma mulher, pois isso é um clichê machista — clichê que, se deve ser rechaçado quando dito por gente de direita, também deve ser repelido seu uso pela esquerda.
Também não se diga que se trata de concordância com o gênero gramatical da palavra "saúde": dizem alguns que, se "saúde" é palavra de gênero gramatical feminino, logo o respectivo ministério deve ser comandado por mulher.
Ora, isso é ridículo. Que dizer então, por exemplo, do Ministério dos Transportes?
Bom, neste último caso, em havendo a necessidade ou obrigação de efetuar a concordância de gênero ministerial, sempre se pode trocar "transporte" por "transportação" ou "transportabilidade" — não será por falta de termos convenientes, pois, ao contrário do que se pensa, nosso idioma nada deve às línguas gringas, inclusive nos quesitos "expressividade" e "abundância vocabular".
Já os saudosistas e simpatizantes da cultura "vintage" podem pleitear a volta do Ministério da Viação Pública...

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Seu Samba

Almirante? Sinhô? João da Baiana? Noel Rosa? Heitor dos Prazeres? Jorge Veiga? Wilson Batista? Ismael Silva? Cartola? Adoniran Barbosa? Martinho da Vila? Geraldo Filme? Moreira da Silva? Jamelão? Jorge Aragão? Germano Matias? João Nogueira? Bezerra da Silva? Zeca Pagodinho? Almir Guineto? Neguinho da Beija-Flor? Agepê? Dicró? Mussum? 🤔
Não.
O pai do Samba é Seu Jorge.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Traumas regionais

(Fonte: www.sp-turismo.com)

"Os paulistas nunca superaram 1932" — disse recentemente um intelectual numa entrevista a um canal do YouTube. Concordo com ele, que completou: "É o único povo que comemora uma derrota".
Já nisto ele está errado, pois não se trata de caso único ou isolado.
Os gaúchos também nunca superaram a derrota na Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos (1835-1845), que eles relembram anualmente todo dia 20 de setembro.
Os pernambucanos, por sua vez, talvez não tenham superado também o fim da Confederação do Equador (1824), liderada por eles, que foram punidos com a perda da Comarca do Sertão, desmembrada e cedida a Minas Gerais, e logo depois, definitivamente, à Bahia: é o enorme território baiano a oeste do rio São Francisco.
Estes não são os únicos exemplos do tipo na história do Brasil. Será que os paraenses já superaram o infame episódio da Adesão do Grão-Pará à Independência do Brasil, assinada em 15 de agosto de 1823 pelas lideranças políticas da província, sob a mira dos canhões de navios ancorados na baía do Guajará, os quais ameaçavam de bombardeio sua capital?
E os cariocas? Já superaram o trauma de o Rio de Janeiro ter deixado de ser a capital da República, de uma hora para outra e sem a necessária preparação e adaptação da cidade à sua nova condição? Mas os cariocas têm alguém em quem pôr a culpa: o goiano Toniquinho Soares, que num comício da campanha para presidente de 1955, em Jataí, perguntou (espontaneamente ou incitado?) a Juscelino Kubitschek se ele cumpriria a constituição e construiria a nova capital. Pego de surpresa (ou será que não?), JK se viu obrigado a responder que sim. Ali foi traçado o destino do Rio. JK venceu. Deu no que está dando... E nenhum paulista tem nada que ver com isso. 🙄😁
Como nação ou em nível regional, nós brasileiros ainda temos muitos traumas para superar. Nossa jornada nunca foi fácil, e apontar os traumas e dificuldades de superação dos outros não ajuda em nada.
Glória no passado? Há controvérsias. Paz no futuro? Talvez, mas a depender do que começarmos a fazer agora.

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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Pós-metáfora

O fato é este: já vivemos em plena era da pós-metáfora, em que tudo deve ser interpretado literalmente, mesmo quando se trata de textos escritos há muito tempo e com intenções evidentemente poéticas e alegóricas.
Lamentável!
Qualquer alusão à cor branca pode ser interpretada como racismo, mesmo que se refira à neve ou a outra coisa naturalmente branca; a doçura de um beijo pode ser ofensiva aos diabéticos ou aos que combatem o consumo de açúcar; e Geraldo Vandré, quando compôs "Caminhando e cantando...", não pensou nos cadeirantes e noutros que não podem caminhar por falta de pernas?
Acho que estamos problematizando muito e pensando pouco. Há muita coisa para fazer, e não resolveremos nossos problemas com problematizações tolas e estéreis que desviam o foco das necessidades mais prementes de nosso povo.