quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Reconquista futebolística

(Imagem: Wikipédia.)

Numa realidade alternativa*, a reconquista cristã da península Ibérica jamais ocorreu.
Após a invasão muçulmana de 711 da Era Comum**, comandada por Tárique, cujas tropas atravessaram as Colunas de Hércules e mudaram o curso da história, diversos impérios muçulmanos, sediados na própria península ou fora dela, alternaram-se no domínio da Ibéria e de outras partes da Europa até meados do século XX (fins do século XIII da Hégira), quando se iniciou o processo de descolonização de Al-Ândalus e outras terras que, depois de mais de 12 séculos de colonização e domínio islâmico, voltaram a ser governadas pelos próprios infiéis, para desgosto dos crentes.
Surgiram diversas monarquias e repúblicas, cujas populações, de forma espantosa, tinham permanecido predominante e culturalmente cristãs e falantes de línguas românicas, celtas, germânicas ou bascas: Galiza, Aragão, Algarve, Leão, Castela, Astúrias, Occitânia, Aquitânia, Vascônia, Francônia, Barcelônia, Provença...
A coragem e determinação desses povos na resistência política e pela manutenção de sua cultura, em face de dominadores tão poderosos e sofisticados, é até hoje exemplar e inspiradora para muita gente, não somente no campo político.
Na Copa do Mundo de 2022, realizada na Irlanda (a primeira num país cristão), a sensação foi a seleção do Algarve, que eliminou as seleções do bicampeão mundial Egito e do Marrocos, três vezes campeão mundial.
Metade dos jogadores do Algarve naquele campeonato tinha nascido fora do país: eram filhos de imigrantes algarvianos estabelecidos em ricas ex-metrópoles — na Otomânia, no Irã, no Egito, na Grã-Mugália ou no Magrebe — que escolheram defender a seleção do país de seus pais, para alegria e delírio da galera decolonial.
"Viva a alegre seleção do Algarve, civilização ibérica invadida pelo Magrebe, que derrotou Egito e Marrocos!"; "O castigo para os árabe-islâmicos tarda mas não falha!"; "Alá é grande, mas Deus é algarbiense!"; "Al-Maraduna*** virou Al-Mara-Nada!" — estes e outros ditos de triunfo semelhantes circularam muito por aqueles dias de euforia, quando o selecionado de um humilde e pequeno país ibérico humilhou as potências políticas e econômicas nos campos da Irlanda, redimindo e alegrando os povos oprimidos e os trabalhadores imigrantes — pelo menos enquanto durou a cerveja****...

* Isto é um exercício livre de ficção alternativa contrafactual. É tudo invenção. Entrem no espírito da coisa, por favor. Não me levem a sério. 😉
** Algumas pessoas parecem achar que antes de 711 não existiam populações humanas na península Ibérica. Só isso explica certas besteiras que se leem por aí na rede. Ou é ignorância ou má-fé.
*** O egípcio Al-Maraduna, nessa realidade alternativa, foi um dos maiores jogadores do mundo, tendo capitaneado sua seleção na conquista do bicampeonato mundial em 1986, na copa realizada em Sumatra.
**** Contrariando decisão da FIFA, presidida por um ex-árbitro de Timbuctu, o rei irlandês João IV O'Brien liberou a cerveja nos estádios.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Fã desde criancinha

— Quem? Ah! Sim... Sei... Claro! Exatamente! Conheço muito. Desde criancinha. Dou o maior apoio. Brincava com minha irmã. Jogava bola com meu primo. Tomava café na casa de minha avó. Sou fã de carteirinha. Amooooooooo! ❤️

É melhor confirmar que conhece e aprecia o(a) famoso(a), cortando logo o papo. Pronto!
Hoje em dia, dizer que desconhece e/ou não curte alguma celebridade que esteja por aí bombando é considerado de mau tom, elitismo, pedantismo, esnobismo, intelectualismo, discriminação contra as escolhas e cultura do povo, mau-caratismo — crimes passíveis de punição por cancelamento.
Seja como for, dizer que gosta de tais figuras não machuca ninguém. É uma mentirinha justificada pela necessidade.
Que seria de nossa civilização e das relações sociais se disséssemos sempre a verdade?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Péssima arbitragem

(Imagem: Internet.)

Numa realidade alternativa, a China não foi "boazinha", como se diz por aqui, e decidiu expandir-se: conquistou grande parte do mundo e espalhou por todos os continentes sua língua, cultura e instituições, entre elas a prática do futebol, de cuja invenção os chineses se gabam. (Há 2 mil anos, um esporte semelhante ao futebol era parte do treinamento militar das tropas imperiais.)
Mas logo os chineses perderam a primazia no esporte que criaram, pois só conquistaram a Copa do Mundo uma vez, em 1966, quando a sediaram.
Na final, ocorrida em Pequim, a China venceu o Japão por 3x2, e a imperatriz chinesa entregou a taça ao capitão da equipe imperial, Wang Lipei, que a recebeu com a empáfia de costume.
Até hoje, porém, nessa outra realidade, os japoneses reclamam da péssima atuação do trio de arbitragem cambojano, pois alegam que o terceiro gol chinês teria sido marcado em impedimento, além de terem sido anulados dois gols legítimos do artilheiro japonês Akira Yamashita.
Alternam-se as realidades, dando-se liberdade à imaginação, mas o futebol permanece o mesmo. Ou não?

Anarcossupermercadismo


Com poucas coisas na cesta do supermercado (numa loja de uma rede gringa das Europas), procurei os caixas específicos para compras pequenas (até 15 itens). Estava aberto apenas um caixa rápido, que já atendia a uma cliente, e havia uma fila com outras três pessoas: um homem idoso de cabelos brancos com um saco de pão e duas mulheres com carrinhos. A fila estava um pouco afastada do caixa e entrava por um corredor. Era uma fila única.
Entrei na fila. Logo chegou uma mulher com dois potes de sorvete e se posicionou atrás de mim.
O caixa se desocupou e chamou o primeiro cliente, o velhinho de cabeça branca com os pães. Ao mesmo tempo, abriram um segundo caixa rápido, que chamou a segunda da fila, uma mulher com dois peixes enormes no carrinho.
Mas, assim que ela entrou no caixa 2, pôs-se atrás dela um cara com um refrigerante de dois litros. Outras pessoas já se colocaram atrás dele. A mulher dos dois potes de sorvete gritou:
— Ei, estão formando fila no caixa 2 e passando na nossa frente!
A mulher que estava antes de mim, que era a próxima a ser chamada, também gritou:
— Ei, aqui é fila única, e vocês estão passando na nossa frente!
Ela empurrou o carrinho para o caixa 2:
— Você tem só um refrigerante e eu deixarei passar. Mas eu estou aqui esperando faz tempo. Sou a próxima.
A mulher dos potes de sorvete colocou-se logo atrás dela na fila.
Pensei: "Ficarei aqui mesmo na fila do caixa 1..."
Quando olhei, havia uma mulher na minha frente com uma cesta de compras e cara de paisagem. O velhinho dos cinco pãezinhos (sim, o saco era transparente e pude contá-los) ainda estava pagando sua compra — um processo que parecia interminável, não sei por quê —, e a recém-chegada, saída de não sei onde, era a próxima da fila!
Enquanto eu pensava na minha sina de recenseador de furadores de fila, percebi que estava assistindo a um fato social e histórico, do qual eu também participava: um grupo de clientes tentou, por iniciativa própria e de forma ANÁRQUICA, sem que o próprio supermercado se importasse com isso ou os ajudasse, criar um sistema de fila única para os caixas rápidos. Mas o experimento foi logo abortado pela LIVRE INICIATIVA de alguns clientes, que viram uma OPORTUNIDADE e foram para os caixas sem atentar para (ou sem se importar com) a fila única já existente ali.
Para mim, ali se via uma demonstração de que, sem a presença do ESTADO ou outra AUTORIDADE a regular minimamente as relações sociais com vistas ao bem comum, qualquer cidadão com um mínimo de poder ou oportunidade logo oprime os que lhe são imediatamente mais fracos, o que corrobora a máxima hobbesiana de que "o homem é o lobo do homem" — até numa fila de caixa de supermercado!
No caixa 2, a mulher dos potes de sorvete já tinha pago sua compra e ido embora; outros eram atendidos. No caixa 1, o cabeça-branca finalmente terminou de pagar seus pãezinhos, e foi chamada ao caixa a mulher que me furou a fila, a da cara de paisagem.
Eu não disse nada. Fingi que nem percebi o ocorrido. Apenas sorri e acenei, rapazes, sorri e acenei.
Afinal, na minha condição de macho branco europoide cis hétero ocidentalizado e cristão, que LUGAR DE FALA tenho eu para reclamar de uma mulher que me tomou a vez na fila do caixa do supermercado? Para enganar a mim mesmo, louvei meu próprio cavalheirismo.
Baixei a bola, recolhi-me à minha insignificância e sem-lugaridade e fiquei aguardando minha vez, esperando que mais ninguém me furasse a fila...

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Eleições

As eleições gerais de 1840, no tempo do Império, tiveram tantos episódios de violência contra eleitores e candidatos, que ficaram conhecidas como ELEIÇÕES DO CACETE — nome que por si já diz tudo.
A julgar pelos fatos lamentáveis dos últimos tempos, parece que até nisso regredimos.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Reciclagem


Elói Elias era morador novo do prédio e ficou contente ao saber que a administração do condomínio tinha instalado recipientes para coleta de material reciclável: tinham cores diferentes e recebiam separadamente plástico, metal, vidro e papel.
"Que bom! Precisamos cuidar do meio ambiente" — pensou Elói Elias.
Dali em diante, Elói Elias separava e juntava o que fosse reciclável e, uma vez por semana, levava tudo até os recipientes, pondo cuidadosamente plásticos, metais, vidros e papéis nas respectivas caixas.
Voltava a seu apartamento com a consciência mais leve, satisfeito por ter feito uma boa ação para a humanidade e o planeta. Lembrava-se com saudade das palavras do chefe do grupo escoteiro de sua infância: "O escoteiro deve fazer pelo menos uma boa ação por dia".
Passaram-se várias semanas. Lá estava Elói Elias, mais uma vez, com seu saco cheio de recicláveis para a coleta seletiva.
Margarida Maria, zeladora do prédio, prestativa e bonachona, viu Elói Elias pondo o material nas caixas e disse:
"Seu Elói, não precisa pôr separadinho, não. Pode pôr tudo numa caixa só. Depois nós juntamos tudo num saco só e jogamos fora."
"Vocês juntam tudo e jogam fora?" — perguntou o surpreso Elói Elias.
"Sim" — respondeu Margarida Maria. — "Colocamos lá fora no dia da coleta. O pessoal da reciclagem abre os sacos e pega alguma coisa que vale a pena para eles, geralmente alumínio. Depois, o que sobra o caminhão do lixo junta e leva para o lixão."
Elói Elias ouviu aquilo, boquiaberto e incapaz de acreditar. Estava estupefato. Para que todo aquele trabalho, se o destino era mesmo o lixão? Por que as caixas separadoras, então?
"Foi aprovado em reunião de condomínio, seu Elói. Alguns moradores fizeram questão. Mas o síndico disse que é só 'pro forma'" — respondeu Margarida Maria, como se lesse os pensamentos dele.
Elói Elias voltou para seu apê abatido, desencantado da vida. O sonho alegria lhe dá, nele reciclagem há...
Quê? Nada disso! Sono? Sonho? Qual! Naquela noite Elói Elias nem dormiu. De raiva! Sentia-se enganado, logrado. Um fracassado. Um otário. "Palhaçada!"
Amanheceu o dia, e ele não tinha pregado um olho. O desânimo ainda iria possuí-lo por mais de uma semana. Mas ele acordou — ou melhor, amanheceu, pois não tinha dormido — naquele dia como um novo homem. Reciclado.
Lembrou-se de uma fábula que sua mãe lhe contara, ou que ele tinha lido num livro de escola. Uma pequena ave voava até um riacho, enchia o biquinho de água e levava aquelas gotas para apagar um incêndio na floresta. Avisada por outros animais, que afastados viam a mata arder, da quase nenhuma efetividade de seu ato, a avezinha respondia: "Estou fazendo a minha parte".
Hoje, quando alguém puxa conversa sobre meio ambiente, reciclagem, efeito estufa, aquecimento global, mudanças climáticas etc., Elói Elias desconversa, diz que não sabe nada sobre esses assuntos, mas acha tudo isso muito legal, e corta o papo.
A coisa é mais forte do que ele, porém. Elói Elias continua a separar seu lixo e a depositar os recicláveis nos recipientes do pátio do condomínio... mas somente quando não há ninguém olhando.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Plano 5 estrelas

(Foto: Internet.)

Parece que muita gente, ao se recolher à noite para dormir, mesmo não crendo em nada, reza para todas as divindades possíveis e imagináveis, pedindo “pelo amor de Deus!” que não haja vida após a morte, sobrevivência do espírito, existências sucessivas, reencarnação, carma e coisas que tais.
Imaginem a cara da pessoa quando, no Além, ao se preparar para voltar a este mundo, topar com um plano de reencarnação com pacote 5 estrelas: HOMEM, BRANCO, CIS, HETEROSSEXUAL e FAMÍLIA CRISTÃ… Cartela completa! Bingo! Será mesmo de lascar o cano!
Para essas pessoas é melhor que não haja mesmo nada disso – ou, pelo menos, que se vá direto para o Céu ou o Inferno. E sem retorno. Será?
Quem morrer verá.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Eu, glutão...

(Foto: https://jornalzonasul.com.br/regiao-mantem-redutos-de-boa-comida-italiana-para-saborear-massas-e-carnes/)

Nos últimos meses, todos os dias eu passei de ônibus em frente a um estabelecimento em cuja placa pequena, de vidro, com fundo transparente e letras escuras, eu lia a palavra italiana TRATTORIA.
Comecei a planejar uma visita ao lugar para conhecer o cardápio desse novo restaurante italiano.
Hoje, pela primeira vez, o ônibus parou, por um minuto, em frente ao estabelecimento, e pude ler a placa novamente, por mais tempo.
Mas nada de TRATTORIA: na placa está escrito TATTOARIA! Trata-se de um ateliê de tatuagem e "piercings".
Em todo este tempo fui enganado por meus olhos e meus óculos... mas a culpa de tudo é de minha gula!