sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Anarcossupermercadismo


Com poucas coisas na cesta do supermercado (numa loja de uma rede gringa das Europas), procurei os caixas específicos para compras pequenas (até 15 itens). Estava aberto apenas um caixa rápido, que já atendia a uma cliente, e havia uma fila com outras três pessoas: um homem idoso de cabelos brancos com um saco de pão e duas mulheres com carrinhos. A fila estava um pouco afastada do caixa e entrava por um corredor. Era uma fila única.
Entrei na fila. Logo chegou uma mulher com dois potes de sorvete e se posicionou atrás de mim.
O caixa se desocupou e chamou o primeiro cliente, o velhinho de cabeça branca com os pães. Ao mesmo tempo, abriram um segundo caixa rápido, que chamou a segunda da fila, uma mulher com dois peixes enormes no carrinho.
Mas, assim que ela entrou no caixa 2, pôs-se atrás dela um cara com um refrigerante de dois litros. Outras pessoas já se colocaram atrás dele. A mulher dos dois potes de sorvete gritou:
— Ei, estão formando fila no caixa 2 e passando na nossa frente!
A mulher que estava antes de mim, que era a próxima a ser chamada, também gritou:
— Ei, aqui é fila única, e vocês estão passando na nossa frente!
Ela empurrou o carrinho para o caixa 2:
— Você tem só um refrigerante e eu deixarei passar. Mas eu estou aqui esperando faz tempo. Sou a próxima.
A mulher dos potes de sorvete colocou-se logo atrás dela na fila.
Pensei: "Ficarei aqui mesmo na fila do caixa 1..."
Quando olhei, havia uma mulher na minha frente com uma cesta de compras e cara de paisagem. O velhinho dos cinco pãezinhos (sim, o saco era transparente e pude contá-los) ainda estava pagando sua compra — um processo que parecia interminável, não sei por quê —, e a recém-chegada, saída de não sei onde, era a próxima da fila!
Enquanto eu pensava na minha sina de recenseador de furadores de fila, percebi que estava assistindo a um fato social e histórico, do qual eu também participava: um grupo de clientes tentou, por iniciativa própria e de forma ANÁRQUICA, sem que o próprio supermercado se importasse com isso ou os ajudasse, criar um sistema de fila única para os caixas rápidos. Mas o experimento foi logo abortado pela LIVRE INICIATIVA de alguns clientes, que viram uma OPORTUNIDADE e foram para os caixas sem atentar para (ou sem se importar com) a fila única já existente ali.
Para mim, ali se via uma demonstração de que, sem a presença do ESTADO ou outra AUTORIDADE a regular minimamente as relações sociais com vistas ao bem comum, qualquer cidadão com um mínimo de poder ou oportunidade logo oprime os que lhe são imediatamente mais fracos, o que corrobora a máxima hobbesiana de que "o homem é o lobo do homem" — até numa fila de caixa de supermercado!
No caixa 2, a mulher dos potes de sorvete já tinha pago sua compra e ido embora; outros eram atendidos. No caixa 1, o cabeça-branca finalmente terminou de pagar seus pãezinhos, e foi chamada ao caixa a mulher que me furou a fila, a da cara de paisagem.
Eu não disse nada. Fingi que nem percebi o ocorrido. Apenas sorri e acenei, rapazes, sorri e acenei.
Afinal, na minha condição de macho branco europoide cis hétero ocidentalizado e cristão, que LUGAR DE FALA tenho eu para reclamar de uma mulher que me tomou a vez na fila do caixa do supermercado? Para enganar a mim mesmo, louvei meu próprio cavalheirismo.
Baixei a bola, recolhi-me à minha insignificância e sem-lugaridade e fiquei aguardando minha vez, esperando que mais ninguém me furasse a fila...

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