domingo, 11 de maio de 2014

Yes, nós temos lavanderias!

Lavagem de roupa em algum ponto da cidade de São Paulo por volta de 1900. (In: Denise Bernuzzi de Sant'Anna, Cidade das Águas.)

Os gramáticos conservadores (perdoem o pleonasmo) sempre denunciaram a suposta decadência da língua portuguesa, que, segundo eles, avilta-se, abastarda-se, desmoraliza-se ante os coloquialismos, neologismos e estrangeirismos, no rumo do desaparecimento.
Esses profetas do fim da língua já fazem tal previsão desde o século XVII, pelo menos, denunciando a infiltração de agentes estrangeiros que se revezariam na missão de destruir nosso lusíssimo idioma: castelhanismo, galicismo, anglicismo, sovietismo, tupinismo, africanismo, internetês, todos eles obviamente aliados aos quintas-colunas de sempre: linguagem das ruas, gírias, calões, jargões, incúria do povo, falta de apego à língua pátria, gringofilia etc.
Mas o português não decaiu, muito menos sumiu; o que se observa é sua mudança, sua transformação, obedecendo à dinâmica da própria linguagem, aos limites da própria língua e às tendências trazidas desde o berço – o Latium, Lácio, terra natal do latim – as quais jazem latentes à espera de ser postas em marcha – de fato, algumas transformações de nossa língua são tendências comuns às línguas neolatinas ou românicas, e já ocorreram há tempos no francês, no romeno, no castelhano ou no catalão, podendo ou não estar ocorrendo agora no italiano, no rético, no galego ou no sardo, além do português.
Um exemplo dessas transformações que parecem seguir tendências latentes pan-românicas é o que ocorre com o fonema /λ/, que representamos em nossa grafia por meio do dígrafo LH, como nas palavras velho, alheio, ilha, mulher, alho etc.: o equivalente francês, representado por LL, há muito tempo tornou-se /i/, apesar de não ter havido mudança na grafia. Transformações tais ocorrem também no castelhano ou espanhol, em que o mesmo fonema /λ/ apresenta variantes que se distribuem por todo o domínio hispanófono. As variantes latino-americanas do castelhano são reconhecidas como legítimas; não são tidas como erradas, mas sim consideradas marcas regionais e tão corretas quanto a pronúncia espanhola do fonema grafado LL.
Já o mesmo não ocorre com as variantes regionais do /λ/ no português: só se considera correta a pronúncia [λ], ou seja, o que grafamos como LH, sendo estigmatizadas negativamente – tidas por erradas, portanto – pronúncias como aio, muié ou mulé, veio, maia em lugar de alho, mulher, velho, malha e assim por diante. O tempo mostrará o que ocorrerá com essas variedades de pronúncia: se a situação continuará como está, se serão incorporadas pela gramática normativa como simples variantes e tão legítimas quanto a forma padrão, ou se haverá retração e desaparecimento delas.
Mas o que motivou este texto foi outra coisa. Voltemos, portanto, à vaca fria.
Levei, há alguns dias, uma peça a uma lavanderia de Santarém, e espantei-me quando li na nota de registro do serviço a palavra roll. Estranho... Comentei o fato com a moça que me atendeu; disse-lhe que havia um L sobrando, pois se escreve rol, mas ela nem mesmo entendeu meu comentário.
De fato, causa espécie que alguém do ramo das lavanderias não saiba que a grafia correta da palavra é rol e que, portanto, não deveria haver roll nenhum ali. Pior ainda do que isso é o fato de que a palavra aparece na nota cinco (!?) vezes:


Tanto a palavra portuguesa rol quanto a inglesa roll são de origem francesa, tendo ambas significado de “lista, relação, listagem de coisas ou pessoas; certo número ou série de pessoas”. Mas por que não se traduziu roll para rol?
Alguns usuários desse programa de computador usado para administração de lavanderias talvez tenham percebido o erro crasso, mas nada podem fazer para corrigi-lo, pois é preciso intervir no programa e alterá-lo; mas seu criador deveria saber disso. Supõe-se que tenha nível superior, tendo cursado a área de informática, computação, sistemas de informação ou qualquer outro nome que tenha o curso; antes disso fez a prova do Enem ou o exame vestibular; bem antes disso passou por 11 anos de escola, onde deve ter estudado literatura e ouvido falar de Álvares de Azevedo, autor destes versos:
“É ela! é ela! — repeti tremendo;
mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!”
Ainda que se trate de programa feito no exterior e traduzido em português, não há desculpa para uma gafe dessas. Custa-me crer que alguém que passou por faculdade não saiba, nem mesmo tenha percebido ou desconfiado, que no português não há palavra alguma com L dobrado (LL), por ser algo desnecessário em nossa grafia; causa espanto que a pessoa não tenha tido a iniciativa de consultar um dicionário para procurar a tradução de roll; é inacreditável que nem mesmo lhe tenha passado pela cabeça o fato de que as pessoas lavam roupas desde o início dos tempos – Yes, nós temos lavanderias!, talvez dissesse hoje Carmem Miranda – e que nossa língua tem termo próprio (e até mesmo técnico) para designar uma lista de roupas sujas.
O leitor percebeu, a partir da introdução deste artigo, que não acredito em decadência das línguas e culturas e outras balelas que tais; a ciência da linguagem já demonstrou que isso não existe, o que não me impede de perceber os sérios problemas que nosso sistema de ensino tem apresentado nas últimas cinco décadas, pelo menos, cujas consequências dizem respeito não apenas ao ensino de língua e literatura, mas a todas as disciplinas escolares. Aceitar a dinâmica da linguagem e das línguas não significa condescender com a confusão entre língua culta e língua popular – diferentes e complementares, cada uma em seu quadrado...
O processo de expansão, universalização e democratização da educação no Brasil, além das dificuldades em adaptar-se aos novos tempos, não veio acompanhado da conservação e melhoria de certos padrões de excelência tidos ou almejados em períodos anteriores, quando as escolas públicas eram berço intelectual de cidadãos diversos e até de políticos – discorde-se do que disseram ou escreveram; critiquem-se suas ideologias; condenem-se seus atos públicos; lance-se sobre eles o anátema da História; mas reconheça-se que a formação oferecida aos cidadãos, apesar de restrita apenas a parte da população, era razoavelmente satisfatória, desde que se conseguisse entrar na escola.
Nosso sistema educacional expandiu-se, mas decaiu. Tornou-se um gigante com cabeça miúda e cérebro retardado. Alimenta-se de crianças e cospe todos os anos multidões de jovens e adultos com dificuldades de leitura, escrita, cálculo, sem saber ciência e sujeitas a manipulações diversas (neste quesito não houve muita mudança). É claro que há exceções, devido a causas diversas, incluindo-se muito esforço e apoio da família. Mas que é difícil escapar à fome pantagruélica do sistema, disso todos sabem.
A coisa, sabemos, é muito mais séria do que simplesmente pensar que roll não tem tradução em português. Em artigo já clássico chamado “Sobre o Óbvio”, Darcy Ribeiro, em 1978, atentava para os problemas de nosso sistema educacional, que, segundo ele, nunca esteve em crise, traçando a síntese do fenômeno:
“Em consequência, a crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso, cujos frutos, amanhã, falarão por si mesmos.
Não encontrei arremate mais eloquente para este texto.

Um adendo, para descontrair:
É ela! É ela! É ela! É ela! (Álvares de Azevedo, 1831-1852)
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
e o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —
a minha lavadeira na janela.

Dessas águas furtadas onde eu moro
eu a vejo estendendo no telhado
os vestidos de chita, as saias brancas;
eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido,
nas telhas que estalavam nos meus passos,
ir espiar seu venturoso sono,
vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
um bilhete que estava ali metido...

Oh! decerto... (pensei) é doce página
onde a alma derramou gentis amores;
são versos dela... que amanhã decerto
ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;
mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim tão bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela, meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

2 comentários:

  1. Corretíssimo. Não há crise educacional. Crise seria se, andando a coisa nos trilhos, repentinamente sobreviessem problemas. Como se sabe, não é esse o caso. Não pode sair dos trilhos aquilo que nunca andou por eles. Desde os tempos coloniais (sem nenhum anacronismo :-))) ).

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  2. Obrigado, Marta Iansen, por sua visita e comentário.

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