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Hans Christian Andersen em 1869. Foto de Thora Hallager. Fonte: Wikipedia. |
I. Napoleão
Mendes de Almeida, o mais notório e polêmico gramático brasileiro do século XX,
tinha como rotina, ao ler os jornais, anotar os deslizes de escrita da imprensa, os quais
serviam de mote para sua coluna de muitos anos, "Questões Vernáculas", n'O Estado de S. Paulo. Aliás, o próprio Estadão era uma das
vítimas costumeiras do lápis de Napoleão, que não poupava ninguém quando se
tratava de corrigir erros gramaticais. Napoleão gostava de apontar principalmente
os erros cometidos por “portadores de anel de grau”, ou seja, gente com curso
superior – que diria ele, hoje, sobre como escrevem portadores de mestrado e
doutorado? Os trechos das reportagens ou artigos, depois de recortados,
anotados quanto a seus erros de pontuação, ortografia etc. e xerocopiados, eram
distribuídos aos alunos do Curso de Português por Correspondência, que
existiu durante 68 anos. Era o material paradidático dos alunos de português.
Passa
longe de mim, por vários motivos, a ideia de comparar-me a Napoleão Mendes de
Almeida. Apesar de ter trabalhado em seu curso durante sete anos, discordo de
muitas de suas opiniões sobre língua, linguagem e gramática, e concordo com
outras, que considero oportunas, pertinentes e coerentes. Diga-se, de passagem,
que os gramáticos raramente concordam uns com os outros a respeito de todos os
pontos de gramática, pois muito do que se diz nos compêndios é fruto da opinião
do autor (opinião baseada em interpretações pessoais dos fatos gramaticais),
podendo ser contradito por meio de exemplos de autores clássicos: para muito
exemplo de autor clássico que abone alguma regra (melhor seria, neste
caso, dizer norma, conforme a lição do linguista romeno Eugenio
Coseriu), há sempre um contraexemplo de autor clássico a desaboná-la.
II. Não
quero imitar Napoleão Gramático, mas não resisti à tentação de também recortar
uma nota jornalística para criticar lapsos (?) grosseiros. É por isso que este
artigo não é sobre as teorias e métodos de Napoleão Mendes de Almeida ou
Eugenio Coseriu, mas sim sobre uma notícia que li no número 16 de Metáfora,
revista de literatura, educação e cultura. Na seção Toques, página 8,
lê-se que foi encontrado um manuscrito inédito do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen; trata-se de autógrafo de outra pessoa, mas é, segundo
especialistas, o primeiro conto infantil de Andersen.
Até
aqui, vai tudo bem, obrigado – nada de podre no reino da Dinamarca... O
problema começa quando se lê o nome do suposto primeiro conto do autor
dinamarquês: The Tallow Candle, assim mesmo, em inglês. Em inglês? Sim,
está em inglês o título – mas não deveria estar.
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Metáfora, ano II, nº 16, página 8 |
Muitos
poderão pensar: Mas na Dinamarca não se fala inglês? De fato, muitos lá sabem
inglês; trata-se de um país altamente desenvolvido (uns diriam civilizado, mas
isto está fora de moda, além de ser antropologicamente incorreto), cujo
avançado sistema educacional proporciona a seus cidadãos a oportunidade de
aprender, já na escola básica, línguas estrangeiras, mais notadamente o inglês
– no passado era o francês, língua internacional até a II Guerra Mundial, além
do alemão, língua do vizinho poderoso do sul.
Isso
me lembra a personagem Macabeia do romance A Hora da Estrela, de Clarice
Lispector: na história lemos que nem se passava pela cabeça de Macabeia a ideia
de que se pudesse falar outra língua – muita gente, aliás, ao ouvir
estrangeiros falando, acha que eles “enrolam a língua”. Um dos vícios mentais
dos dias de hoje – partilhado por gente de nenhuma, pouca ou muita instrução –
é pensar que, fora da América Latina e da Ibéria (incluindo-se aqui a França e
a Itália, por afinidade e contiguidade), todo o mundo fala inglês, menos nós, pobres brasileiros monoglotas e apegados a uma língua emprestada de segunda classe – e muitos ainda entendem a ideia de “falar inglês” como não saber falar outra língua além desta.
Um
de nossos mais prestigiados filósofos da cultura popular, que faustonicamente
enche a tela da TV em nossas tardes de domingo, afirma que “o português não é
língua, é código secreto”, e esta asserção parece ter-se entranhado na mente
dos brasileiros, que têm vergonha de sua própria língua.
III. A
língua nacional e oficial da Dinamarca é o dinamarquês ou danês, idioma
germânico pertencente ao grupo setentrional, do qual também fazem parte o
norueguês, o islandês e o sueco (o finlandês, apesar de próximo geograficamente
das aqui citadas, não é língua germânica, nem mesmo indo-europeia). Por que,
afinal de contas, se na Dinamarca se fala dinamarquês e Hans Christian Andersen
compôs sua obra em dinamarquês, fez-se referência ao conto com o nome em inglês?
É claro como o Sol: a notícia foi lida em inglês (talvez aqui) e citou-se o nome do conto
nesta língua, sem a menor preocupação de saber se o título original é aquele
mesmo – é possível ainda que o redator da nota da revista Metáfora nem
saiba que há uma língua dinamarquesa. Até se compreende que alguém de pouca instrução não saiba
dessas coisas... Mas alguém com curso superior desconhecer essas
informações é algo que não se pode conceber. Uma leitura mais atenta e uma consulta
mais demorada mostrariam que o nome do texto A Vela de Sebo na língua
original é Tællelyset.
A
coisa, porém, não acaba aqui. Não sei se Shakespeare tinha razão ao dizer que
havia algo de podre no reino da Dinamarca, mas parece que, no Brasil, a palavra
Copenhague apodrece... Vira e mexe, ao se noticiar um fato ligado à
capital da Dinamarca, faz-se referência a ela como Copenhagen; indagados, os que assim fazem dizem que estão usando o
nome original da cidade, e que é este o modo correto de proceder, devendo ser
citado o nome em sua forma original.
IV. Santo
engano, Batman! – diria com certeza o Menino-Prodígio... São dois grosseiros
equívocos numa só explicação. Se nossa língua possui termo próprio para designar
país, cidade ou localidade estrangeira, esse é o nome que se deve usar, e não o
original. Trata-se de tendência das línguas, que adaptam os termos estrangeiros
à sua fonologia, fonética e ortografia, além de morfologia, como ocorreu com todos os idiomas, por isso também com o português: quem reconhece em sinuca e chulipa
os originais ingleses snooker e sleeper? Pois é, são o resultado
de adaptação fonética e posterior configuração ortográfica.
Outro exemplo: Em
português, os nomes hebraicos Shlomo, Shmuel, Shoshannah, Shaul
e Gershon assumiram as formas Salomão, Samuel, Susana,
Saul ou Saulo e Gérson, respectivamente, e isto não foi
sem motivo: estes nomes passaram do hebraico ao grego, deste ao latim e daqui
para nossa língua; como em grego e latim não havia fonema correspondente ao
hebraico ש (shin,
letra que representa o fonema equivalente ao nosso X de xarope ou CH de chapéu),
ele assumiu a forma mais próxima, /s/, grafado em grego Σ e em latim S, e assim
passou ao português e outras línguas. O mesmo ocorreu com os nomes Jesus
e Josué, ambos provindos de Yeshua, variante de Yehoshua.
V. Já
tive oportunidade de tratar deste assunto em outros dois artigos publicados
neste mesmo blogue (aqui e aqui). Para as principais localidades da Europa
(para ficarmos apenas nessa parte do Velho Mundo), o português e as línguas
europeias em geral têm formas próprias vernáculas, sem a necessidade de usar as
formas estrangeiras; no caso de Copenhague, o deslize é ainda mais
grave, pois quem usa Copenhagen diz estar usando a forma original, o que
é falso, porque esta é a forma inglesa – o nome da capital da Dinamarca na
língua do país, isto é, o dinamarquês, é København! (Para tirar isto a limpo, basta consultar aqui a página sobre essa
cidade na Wikipédia em dinamarquês.)
Em
português, portanto, devemos usar as formas Copenhague (no Brasil) ou Copenhaga
(em português europeu). É sabido que alguns nomes tradicionais, não sei por que
motivo, vêm caindo em desuso, sendo substituídos em português, principalmente
na mídia, pelas formas originais ou em inglês (que os desavisados julgam ser as
“originais”) – daí o procedimento se espalha para o grande público, que não é
fã de consultas a dicionários e enciclopédias.
VI. Segue
abaixo uma pequena lista com alguns nomes geográficos estrangeiros que costumam
aparecer na imprensa, seguidos das formas vernáculas correspondentes (em
negrito), que são as que devemos preferir; algumas de fato só se usam em
Portugal, mas usá-las não é erro, embora muita gente vá torcer o nariz – na
dúvida, sendo possível, de acordo com a necessidade de clareza, prefira-se
sempre a forma tradicional:
Amsterdam – Amsterdã,
Amsterdão (Holanda)
Bavária – Baviera (Alemanha)
Beijing – Pequim (China)
Belarus – Bielorrússia
Berlin – Berlim (Alemanha)
Bern – Berna (Suíça)
Bonn – Bona (Alemanha)
Budapest – Budapeste (Hungria)
Dublin – Dublim (Irlanda)
Frankfurt – Francoforte (Alemanha)
Geneva – Genebra (Suíça)
Guangzhou, Guangdong – Cantão
(China)
Helsinki – Helsinque,
Helsínquia (Finlândia)
Jersey – Jérsei, Jérsia (Grã-Bretanha)
Leipzig – Lípsia (Alemanha)
Mainz – Mogúncia (Alemanha)
Moldova – Moldávia
München – Munique (Alemanha)
Nanjing, Nanking – Nanquim (China)
New Jersey – Nova Jérsei,
Nova Jérsia (EUA)
New York – Nova Iorque (EUA)
Pennsylvania – Pensilvânia
(EUA)
Philadelphia – Filadélfia (EUA)
Roterdam – Roterdã,
Roterdão (Holanda)
Shanghai – Xangai (China)
Stuttgart – Estugarda (Alemanha)
Taipei – Taipé
(Formosa)
Taiwan – Formosa
Tchetchênia – Chechênia
Tokyo – Tóquio (Japão)
Toullouse – Tolosa (França)
York – Iorque (Grã-Bretanha)
Zurich – Zurique (Suíça)
P. S.: Acho que esta noite me baixou o espírito de algum gramático bem brabo. Vou providenciar uma sessão de descarrego com o pastor Marcos Bagno. Só não posso esquecer-me de nossa bíblia: Cours de Linguistique Générale de Ferdinand de Saussure!
Santarém, Pará, 15/3/2013. Editado em 29/5/2015.