terça-feira, 9 de abril de 2013

Gilberto Dimenstein e a baianidade

Gilberto Dimenstein (Folha de S. Paulo)

Em fins de 2012, no processo de composição de seu futuro secretariado, o recém-eleito prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, nomeou Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, como secretário de Cultura do município. Juca Ferreira é baiano, e parece que sua escolha como secretário desagradou a algumas pessoas. Em 10 de dezembro, após a indicação de Ferreira, o jornalista Gilberto Dimenstein publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo um artigo, bastante irônico, em que comenta o fato de que certos setores (ou seja, as tradicionais panelas) ligados à cultura na cidade de São Paulo ficaram incomodados com a nomeação de Juca Ferreira. Com o título “Haddad precisa importar um baiano?”, o texto, tão logo saiu a público, foi taxado como preconceituoso e xenófobo, além de muito criticado. Parlamentares defensores dos direitos de minorias se imiscuíram no assunto, chegando um deles a dizer que se tratava de preconceito antinordestino “dos paulistas”: de um momento para o outro, 42 milhões de cidadãos foram considerados racistas.
Não vejo discriminação no texto de Dimenstein, e o uso do termo racismo é equivocado e exagerado: a população baiana não constitui uma raça a parte da brasileira (nem os brasileiros são uma raça), logo ninguém pode ser tido como alvo de racismo apenas por ser nascido na Bahia ou em qualquer canto do Brasil. Infelizmente, discriminação regional também existe, e muita, no Brasil, todos sabemos disso (não apenas em relação à Bahia, mas a qualquer lugar); mas daí a ser racismo vai uma distância grande – pequena ou nula, porém, para quem conhece e domina com pouca clareza os termos vernáculos.
No dia seguinte, 11 de dezembro, motivado pela polêmica em torno de seu texto, Dimenstein publicou uma tréplica, sob o título “Sou mesmo xenófobo?”, em que, com razão, critica a leitura superficial, distorcida e equivocada que recebeu.
Em seus dois artigos, Gilberto Dimenstein lançou mão da ironia, e parece-me que as pessoas estão perdendo (se é que a tinham) a capacidade de perceber e entender a ironia – o que é por demais irônico, principalmente num país que se gaba de ter, como maior expoente de sua literatura, um autor conhecido e reconhecido por sua ironia fina, à inglesa, o que o tornaria digno de ocupar lugar entre os maiores nomes da literatura universal. Refiro-me obviamente ao Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis.
Lendo-se atentamente ambos os artigos de Gilberto Dimenstein, percebe-se que ele não foi preconceituoso contra baianos ou habitantes de outros estados do Brasil. Não digo isso porque sou paulista; parece haver uma tendência leviana de relacionar uma espécie de “elite branca reacionária” com a população paulista em geral, e paulistana em particular; de um momento para o outro, a culpa de todos os problemas do Brasil passou a ser lançada sobre os paulistas, e o estado de São Paulo tornou-se a Geni nacional, alvo de pedradas sem direito a reclamação.
Se existe essa tal “elite branca reacionária”, não faço parte dela, mesmo porque não me considero branco; estamos na era da autoafirmação, e requeiro, portanto, o direito de não me considerar branco, nem negro, nem índio, embora tenha entre meus ancestrais gente destas três origens; considero-me mestiço. Sou um paulista típico, pois, como grande parte da população de São Paulo, sou filho de gente que veio de outras regiões: meus pais são nordestinos, mas nem por isso me julgo menos paulista que qualquer descendente de Tibiriçá, de Brás Cubas, de João Ramalho ou do Bacharel de Cananeia. Amo o Brasil e a cidade e o estado em que nasci, como os demais paulistanos e paulistas os amam, e como os nascidos em outras plagas amam sua terra natal, também; mas não abro mão do direito de discordar das coisas erradas que vejo lá, assim como não posso concordar com críticas e acusações injustas.
Paulistas e paulistanos, fluminenses e cariocas Interrompo aqui meu pensamento para uma pequena digressão semântico-lexical, necessária devido a certos equívocos cometidos por desconhecimento ou confusão.
Não devem ser confundidos os termos paulista e paulistano. Paulista (adjetivo e substantivo de dois gêneros, portanto variável apenas em número) remete ao estado de São Paulo, portanto o paulista é o nascido, originário ou habitante de qualquer ponto desse estado. Já paulistano se refere à cidade de São Paulo, sua capital, sendo apenas os naturais ou habitantes desta cidade os paulistanos. Portanto, quem nasce em Cotia, Osasco, Guarulhos, Santos, Taubaté, Teodoro Sampaio, Ribeirão Preto, Vargem, Mococa, Mongaguá, Cunha, Juquitiba, Taboão da Serra, Presidente Epitácio, Bertioga e outros 630 municípios é paulista, mas não paulistano. Assim, o governante paulista é Geraldo Alckmin e o governante paulistano é Fernando Haddad.
O torcedor do São Paulo Futebol Clube é conhecido como são-paulino. Há ainda os termos são-pauleiro e paulisteiro, designativos daqueles que se dirigem ao estado de São Paulo para trabalhar, em ocupação temporária ou não, na roça ou na cidade. Na obra em que estudou o tema dos são-pauleiros, Ely Souza Estrela usou a forma sampauleiro, que não se encontra registrada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras; também não a encontrei em dicionários. O termo parece ser bem antigo: o dicionário em rede da Real Academia Galega define sampauleiro ou pauleiro, em galego – a língua mais próxima do português – como “paulista”.
Confusão semelhante ocorre com os termos fluminense e carioca. O primeiro designa o nascido ou habitante do estado do Rio de Janeiro, enquanto carioca se refere exclusivamente à cidade do Rio de Janeiro, capital fluminense. Creio que, em parte, a confusão advém da cultura futebolística: como há um clube esportivo com o nome Fluminense Football Club, a linguagem popular acabou por atrelar o adjetivo fluminense ao clube de futebol, designando com ele sua torcida e tudo o que lhe diz respeito; estendeu-se então o nome carioca ao estado, e as disputas esportivas de nível estadual passaram a ser chamadas cariocas, a exemplo do próprio campeonato estadual de futebol, o Cariocão (deveria ser Fluminensão!). Torcedores do América, Bangu, Botafogo, Flamengo, Vasco da Gama etc. parecem não aceitar ser chamados fluminenses, ainda que sejam naturais do estado do RJ, para não ser confundidos com os torcedores do Tricolor das Laranjeiras; mas é sempre adequado usar as formas específicas.
Pauliceia – A cidade de São Paulo pode não ser o melhor lugar do mundo para viver; muito pelo contrário, viver em São Paulo é difícil, pois são muitos os problemas enfrentados diariamente por seus habitantes, e esses problemas estão distantes de uma solução: o trânsito caótico, o insuficiente sistema de transportes, a educação pública, a segurança, a saúde e outros serviços que não agradam à população têm sido, até agora, o preço a pagar pelo crescimento rápido e sem controle da Pauliceia. Por outro lado, a cidade tem sido local de oportunidades inumeráveis para seus moradores antigos ou para os recém-chegados, que a ela se dirigem em busca de uma vida melhor. São Paulo pode não ser tão cosmopolita quanto pensam e querem seus moradores, mas é inegavelmente a mais cosmopolita das cidades brasileiras, e isto tem sido demonstrado, nas últimas décadas, pela diversidade cultural que abriga e pelas mudanças ocorridas na cultura paulistana e em suas práticas políticas.
A cidade de São Paulo não foi a primeira, no Brasil, a ser chefiada por uma mulher; mas a eleição de Luiza Erundina, em 1988, chamou a atenção do Brasil, entre outras coisas, por se tratar de uma migrante nordestina (Erundina é paraibana). Já Celso Pitta (1946-2009) não foi o primeiro negro a ser prefeito de São Paulo; mas, ao eleger Pitta, São Paulo escolheu um prefeito negro e carioca. Será que outras cidades elegeriam um paulistano como prefeito? Erundina e Pitta são exemplos de que o eleitor paulistano, ao contrário do que se pensa, é capaz de votar em propostas, independentemente da origem dos indivíduos que as defendem.
Durante sua gestão, Erundina nomeou o pernambucano Paulo Freire (1921-1997), que dispensa apresentações, para dirigir a Secretaria de Educação do Município de São Paulo. Sua gestão daquela secretaria foi criticada por questões ideológicas, mas não por sua origem.
Ainda no campo educacional: os quadros das universidades estaduais paulistas (USP, Unesp, Unicamp) estão repletos de professores e pesquisadores oriundos de outros estados, os quais foram aprovados em concursos e dedicam-se ao ensino e à pesquisa, sem que se questione de onde vieram. Vale o mesmo para o alunado, pois o vestibular das universidades paulistas (custeadas pelos impostos recolhidos pelos paulistas, frise-se isto) é aberto a pessoas de todos os cantos do Brasil e também do exterior. Diga-se o mesmo dos cursos de pós-graduação.



Luiza Erundina e Celso Pitta: filhos de outras terras, governaram a cidade que os acolheu

O estado de São Paulo e sua capital sempre foram muito receptivos a migrantes, que encontram aí oportunidades que talvez não tivessem em seus estados natais; entre os migrantes se incluem também políticos. O piauiense Frank Aguiar, os cearenses José Genoíno e Tiririca, o alagoano Aldo Rebelo, o pernambucano Roberto Freire e o já falecido acriano Eneias Carneiro (1938-2007) foram eleitos deputados federais por São Paulo; José Genoíno quase se elegeu governador paulista, tendo chegado ao segundo turno, e Frank Aguiar é hoje vice-prefeito de um dos mais ricos e importantes municípios paulistas, São Bernardo do Campo. Já Roberto Freire, depois de uma carreira longa em Pernambuco, tendo sido, inclusive, senador por seu estado natal, migrou para São Paulo e foi eleito. Outro exemplo é o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que nos anos de 1990 foi candidato a prefeito da capital paulista. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (fluminense) e Luís Inácio Lula da Silva (pernambucano) também construíram suas carreiras políticas em São Paulo. Em época mais recuada, políticos como o fluminense Washington Luís e o sul-mato-grossense Jânio Quadros fizeram carreira nas urnas paulistas – ambos foram prefeitos da capital, governaram o estado de São Paulo e presidiram a República, além de ocuparem cargos legislativos.


Washington Luís (1869-1957), o Paulista de Macaé

Não consta que os políticos citados acima tenham recebido votos apenas de seus conterrâneos residentes em São Paulo.
O cosmopolitismo paulistano mostra-se também, como seria de esperar, no campo cultural. Em 2004, aquando das comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo, foi convidada a baianíssima Daniela Mercury para cantar o hino comemorativo daquele evento; não me lembro de nenhuma reclamação de quem quer que fosse em relação a isso. Por que escolheram Daniela Mercury eu não sei (talvez uma homenagem ao Nordeste – está na moda); cantoras há também em São Paulo, e talvez tal fato tenha gerado ciúme em alguma delas (é uma suposição minha), mas ninguém se importou com a escolha. Será que em outros lugares se chamaria uma cantora de fora para tal solenidade?
Não incomoda a ninguém, também, o fato de a célebre Sinfonia Paulistana, obra tão representativa da cidade de São Paulo, ser obra de um paraense, Billy Blanco. Qual problema haveria nisso, afinal? Homenagens não se recusam.
Um dos principais símbolos paulistas, a bandeira estadual, foi criado por um mineiro, Júlio Ribeiro, jornalista, romancista e gramático, em 1888. Era o pavilhão do movimento republicano em São Paulo, criado para ser a bandeira do Brasil republicano; hasteada no lugar da bandeira do Império do Brasil, logo após chegar à província paulista a notícia da proclamação da República, serviu de bandeira provisória do novo regime em São Paulo até a instituição da bandeira atual, em 19 de novembro de 1889. Será que algum paulista pleitearia a substituição da bandeira estadual, apenas por ter sido criada por um filho de Minas Gerais?




A bandeira do estado de São Paulo e seu idealizador, Júlio Ribeiro (1845-1890): símbolo paulista criado por um mineiro

Dimenstein e a baianidade – Gilberto Dimenstein foi taxado de racista, xenófobo, antinordestino; mas creio que tudo isso foi um exagero, um engano motivado pela leitura superficial, pouco atenta e apressada, combinada com o desejo de achar preconceito em todo o lugar. Afinal de contas, quem procura, sempre acha... Basta ler o artigo que deu início à polêmica, e a tréplica, para perceber que, ao contrário do que disseram, Dimenstein considera positiva a escolha de Juca Ferreira como secretário, por vários motivos que expôs; e por seu cosmopolitismo, São Paulo sempre se mostrou aberta a iniciativas como esta, apesar do pouco reconhecimento que recebem.
Criticou-se ainda, no texto de Dimenstein, o uso da palavra baiano, sob a alegação de que, em São Paulo, é termo pejorativo; e é mesmo: além de ser usado como genérico para os nordestinos em geral, tem um sentido próximo de “provinciano”. Mas... e se Juca Ferreira fosse gaúcho, mineiro ou paraense? Não se levantariam também, talvez, questões sobre supostas conotações desses gentílicos? Em alguns lugares, o termo paraíba é usado com o mesmo sentido pejorativo que tem a palavra baiano em São Paulo, e não vejo movimento tão forte contra seu uso.
Se há pessoas que se incomodam com usos pejorativos da palavra baiano, sempre há uma opção: segundo os dicionários, a Bahia tem outro gentílico, baiense, substantivo e adjetivo de dois gêneros, variável apenas em número; assim como baiano, baiense significa “da Bahia; típico desse estado ou de seu povo”.
De minha parte, pelo menos, o problema está resolvido: uma de minhas avós era natural da Boa Terra, e a partir de agora, conforme a situação e ao gosto do freguês, poderei dizer que tive uma avó baiense ou baiana.

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