segunda-feira, 8 de maio de 2023

Machado de Assis: capacitista?

A discussão sobre alterações em trechos de livros de Monteiro Lobato, Roald Dahl, Ian Fleming e Agatha Christie, acusados de ferir a sensibilidade dos leitores por meio de frases tidas como preconceituosas, traz-me à memória aquele trecho do capítulo XXXIII de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", quando o narrador Brás Cubas comenta, após reparar no coxear* de Eugênia (a que ele faz alusão no capítulo anterior):

"O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?"

Na lógica dos leitores sensíveis, parece que nem o cultuado Bruxo de Cosme Velho, maior glória da literatura nacional, escapou disso. Ninguém é perfeito...
Seria isso demonstração de capacitismo do autor? Insensibilidade e falta de consciência de classe de um homem negro e epilético? Ou estaria ele, em sua obra, mostrando a vida como ela é por meio de uma personagem vil, desprezível, asquerosa, infame, mas ainda assim tão parecida com muita gente com que convivemos todos os dias? Ou talvez parecida com nós mesmos?
Um erro cada vez mais arraigado hoje é o de confundir personagens ou o narrador de uma obra de ficção com o próprio autor da ficção. Há personagens racistas na obra de Machado de Assis; quer isto dizer que Machado era racista?
Estropiarão também a obra de Machado de Assis para evitar ferir a sensibilidade dos pobres leitores? Terão muito trabalho, a começar por esse livro que cito aqui, pois as personagens dele não são rasas, mas complexas, como são todos os seres humanos, e nisso reside o gênio do autor.
Mas talvez queiram edulcorar as personagens e trechos para que o texto machadiano se torne leve como um conto de fadas dos dias de hoje... Daí sairiam, com certeza, ótimos roteiros para filmes da Disney!
Ou talvez não se faça nada. Quem lê Machado de Assis hoje em dia? E quem o lê com vontade e prazer? Uma coisa é usá-lo como figura de luta política e racial, esfregando a negritude de Machado (e de Cruz e Sousa, Lima Barreto, João do Rio, Mario de Andrade...) na cara da "elite branca, macha, heterossexual e cis"; outra bem diferente é enfrentar sua obra sem a obrigação da leitura escolar.
Se a coisa rolar mesmo, estou aqui à disposição para fazer a revisão do texto, após a dilapidação dele, pois trabalho é trabalho. Pagando bem, que mal isso tem? Às favas com os escrúpulos, desde que ao vencedor sobrem as batatas — ou pelo menos algum cachê pela revisão textual.
Já a minha coleção completa de Machado de Assis ficará bem guardada, e nela ninguém porá a mão.

* Observação: coxo = manco; coxear = mancar.

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