terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Pesadelo em Nova Iorque

Não costumo sonhar. Melhor dizendo, raramente me lembro dos sonhos que tenho. Mas há poucos dias tive um sonho – ou pesadelo – que me deixou lembranças bem vivas, por isso eu o conto aqui enquanto ainda me lembro dele.
Sonhei que estava em Nova Iorque (New York, para os habitués). Eu e minha esposa tínhamos viajado para lá a fim de participar de uma festividade, talvez de fim de ano, sei lá, não tenho certeza do porquê. Também não sei como chegamos lá – de avião, imagino. Mas nada de neve, apenas fazia frio e o tempo estava fechado, nebuloso – isto quando não estava chovendo torrencialmente. Os States enfrentavam uma temporada de chuvas fora do comum.
Chegamos muito cansados e minha esposa ficou no hotel. Eu saí para dar um rolê pela Big Apple. Entrei num ônibus e fiquei circulando pela cidade, numa viagem que parecia não ter fim.
Ruas e avenidas apinhadas de gente e carros, prédios altíssimos, um trânsito infernal. De repente começou a chover. As pessoas fugiam da chuva e as ruas se enchiam de água. Chuva cada vez mais forte. O tráfego ficou mais lento até que parou de vez. Lembrei-me dos congestionamentos de São Paulo em dias de chuva.
(Longe de mim a audácia de querer comparar uma metrópole subdesenvolvida como São Paulo com a Meca do Mundo Livre... mas é a única referência que tenho!)
O ônibus estava parado em cima de um viaduto. Da fileira de carros vinha um buzinaço sem fim, interrompido pelos trovões. Olhei pela janela e estremeci: a avenida de várias pistas sob o viaduto agora era um rio caudaloso. Carros e pessoas eram levados pela corrente, gente passava agarrada a objetos flutuantes. Um ônibus gigantesco e de feitio futurista, amarelo e bastante envidraçado, cheio de gente que gritava desesperada, vinha flutuando, jogado para lá e para cá pela água como uma barca ou balsa. Foi arremessado contra as pilastras do viaduto e se despedaçou, cuspindo os passageiros para todos os lados.
A chuva caía sem cessar. Escurecia. O tempo passava e eu tentava falar com minha esposa, mas o telefone celular não completava a ligação. No meu ônibus, os passageiros se desesperavam. Uns ouviam pelo rádio que o alagamento tomava conta não só de Nova Iorque, mas de grande parte do país. Outros liam nos telefones as notícias sobre as mortes por afogamento, os desabamentos... Depois as comunicações se interromperam, silenciando-se.
(Não sei como eu entendia o que diziam, pois não falo inglês.)
Estávamos num lugar alto, o viaduto, a salvo da enchente. Ainda chovia e equipes de salvamento surgiam de vários lados para resgatar os que se afogavam, tirando-os dos carros ou da água que enchia as ruas. O motorista abriu a porta do ônibus e entraram militares fardados. Um deles era de origem asiática, tinha um fuzil a tiracolo e uma pistola na cintura. Encarou-me como se me conhecesse, e eu o reconheci imediatamente: ele tinha servido comigo num batalhão de infantaria do Exército Brasileiro, em 1991! Não conseguia lembrar do nome dele. Meia dúzia dos companheiros de minha companhia de fuzileiros eram de origem japonesa. Aquele era o Miyagi? Era o Katsuhiro? O Urozaki? Yashida? Toshio? Ednélson? Sei lá... era um daqueles japas. Mas o que fazia ali?
– Você por aqui? – disse o ex-colega fuzileiro.
– Pois é... E você?!
– Você ainda é um guerreiro? Um soldado?
– Acho que sim... – disse eu, sem saber bem o que dizer e lembrando daquele ano de treinamento militar.
– Ótimo! Você está convocado como voluntário da Guarda Nacional dos Estados Unidos da América. :D
– !? :(
Saímos do ônibus acompanhados de outros “voluntários” e seguimos em fila entre carros parados. A chuva diminuía; as ruas estavam cheias de entulho, lama e corpos. Entramos num ônibus militar grande e alto, com rodas enormes, já cheio de outros alistados compulsoriamente. Deram a partida e seguimos à toda pelas ruas alagadas e sujas, escuras e com pouca gente. O ex-colega japonês tinha sumido e a tropa do ônibus estava sob a comando de uma mulher, cuja patente não reconheci e de cuja fisionomia não me lembro.
O veículo parou. Descemos e seguimos andando em fila entre mais lama, escombros e pessoas encolhidas, chorando e gritando de frio, enroladas em cobertores, ao lado de corpos de parentes ou conhecidos mortos. Casas e pequenos prédios haviam caído pela força da água, lugares baixos – inclusive o metrô – estavam alagados, agentes da defesa civil distribuíam comida e roupas. O cenário era de guerra, um cataclismo. Não havia eletricidade. A luz vinha de lamparinas e fogueiras dentro de latões de lixo e a única comunicação era feita pelos rádios dos militares.
Entramos numa sala enorme, onde receberíamos equipamento. Estava cheia de gente, homens e mulheres com idades de 20 a 45 anos. Cerca de metade dos “voluntários” eram estrangeiros, supostamente turistas. Destes – além de asiáticos, africanos e europeus – a maior parte era de latino-americanos, o que se percebia pela língua que falavam. Eram negros, brancos, índios e mestiços de todos os matizes. A mulher que viera conosco no ônibus comandava tudo, distribuindo ordens, roupas, armas e ferramentas.
Um sujeito barbudo puxou conversa.
– “¿Dónde eres?”
– “De Brasil.”
– “Soy de Puerto Canal.” (Não sei se essa cidade existe, mas algo me dizia que ele era do Panamá.) Só pude soltar uma pergunta tola que me estava na ponta da língua:
– “¿Panamá ha hecho el Canal o el Canal ha hecho a Panamá?”
Ele a princípio sorriu, depois emendou uma enorme gargalhada, seguida por vários dos que estavam presentes. Nós todos sabíamos que o (Canal do) Panamá tinha sido feito pelos ianques – à força!
Outros entraram na conversa, cada um falando sua língua. Curiosamente, nós nos entendíamos. Vestíamos as fardas e testávamos o equipamento, enquanto conversávamos. Nossa equipe era a do trabalho pesado: iríamos sair para efetuar os salvamentos, arrombando portas, arrancando janelas e tirando pessoas que não tinham conseguido sair de casa. Outro grupo teria a tarefa de coibir saques ao comércio e residências.
Estávamos saindo para a primeira missão, quando...
... acordei com as lambidas de nosso cachorro, o Thor! Eu estava com a garganta seca, rouco e com um horrível gosto de cabo de guarda-chuva na boca. E uma tremenda azia!
Uma pena que não pude sonhar até o fim, para saber o final da história. Mas o sonho, ainda que interrompido, deu-me muito o que pensar. Nunca pensei que, mesmo num sonho, eu seria “voluntário” da Guarda Nacional dos EUA numa enchente em Nova Iorque.
Logo eu, que nunca tive a menor vontade de conhecer os Estados Unidos...
Talvez Freud explique isso.

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