“Para ser poeta, não é suficiente saber
escrever poemas. É necessário ter capacidade para defendê-los.”
Yevgeny Yevtushenko, Autobiografia precoce
Lendo
a obra “Autobiografia Precoce” (1963) do escritor, ator e diretor russo Yevgeny Yevtushenko (ou Eugênio Evtuchenko, como ficou conhecido no Brasil), topei com
a passagem que reproduzo abaixo, a qual consta no capítulo 4. Trata-se de
descrição da reação da população moscovita quando da passagem, pela capital
russa, de cerca de 25.000 prisioneiros de guerra alemães. Yevtushenko tinha, à
época, 11 anos.
É
curiosa e espantosa, ainda que não fosse inesperada, a reação da população, que
se dá conta de um aspecto que não contava encontrar em seus inimigos de guerra:
humanidade. Nos tempos atuais, mais do que nunca, fatos como esses nos levam a
refletir sobre o autoritarismo e o nacionalismo, que só tem servido para
separar os seres humanos, levando-os à mais bizarra
das criações humanas: a guerra.
“Em
1944 minha mãe e eu voltamos a Moscou. Aí, pela primeira vez em minha vida,
tive ocasião de ver os inimigos. Se não me engano eram 25.000 alemães que
deviam atravessar, em uma só coluna, as ruas da capital.
Todas
as calçadas estavam apinhadas de gente cercada pelos soldados e pela milícia. A
multidão era constituída, na sua maioria, de mulheres.
Mulheres
russas, de mãos deformadas pela dureza do trabalho, com lábios sem batom,
ombros magros sobre os quais repousava o peso essencial da guerra. A cada uma
delas, provavelmente, os alemães haviam levado um pai, um marido, um irmão ou
um filho.
Elas
olhavam com ódio na direção de onde se esperava a coluna de prisioneiros.
Depois,
esta apareceu.
Na
frente, marchavam os generais, trazendo levantados os maxilares maciços, e os
ângulos dos lábios contraídos, desdenhosos. Assim, queriam reafirmar a sua
superioridade aristocrática sobre a plebe que os havia vencido.
As
mãos obreiras das mulheres russas se fechavam coléricas quando eles passavam.
-
Fedem a água de colônia, esses sujos! gritou alguém na multidão.
Os
soldados e os milicianos tiveram que se apoiar em toda a força de seus corpos
para impedir que as mulheres rompessem a barragem.
No
entanto, de repente, algo se passou com a multidão.
Chegavam
os soldados alemães, magros, sujos, barbados, as cabeças envoltas em ataduras
ensanguentadas, apoiados em muletas ou nos ombros de seus camaradas. Passavam
cabisbaixos.
Um
silêncio de morte se instalou na rua. Não se ouvia nada a não ser o lento
arrastar dos seus sapatos e de suas muletas.
Vi
uma matrona usando grandes botas russas colocar a mão no ombro de um miliciano.
-
Deixe-me passar.
Havia
algo na voz daquela mulher. Diante do tom imperativo o miliciano abriu-lhe o
caminho. Ela aproximou-se da coluna e tirou de seu blusão um pedaço de pão preto
cuidadosamente envolto num lenço. Deu-o a um prisioneiro exausto, que se
sustinha com dificuldade.
De
repente, outras mulheres seguiram seu exemplo e começaram a jogar pão e
cigarros aos soldados alemães vencidos.
Não
eram mais os inimigos.
Eram,
agora, homens.”
Evtuchenko,
Eugênio. Autobiografia precoce. Tradução
de Yedda Boechat Medeiros. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1967,
pág. 37-39.
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Júlio, tocante esse seu recorte e reflexão. Quantas vezes nós assumimos e adotamos algo como verdade sem ter a devida noção do que de fato isso abarca? O trecho citado e a sua exposição levaram-me a pensar o quanto o espaço da cultura é antagônico: marcado constantemente por disputas e tensões ideológicas. Sendo a identidade determinada por um movimento de rearranjo constante. A cena foi tão chocante (“humana”) que a imagem construída do inimigo não se prevaleceu e implicou um efeito e transformação naqueles sujeitos: vencidos e a multidão. Realmente devemos nos deter sobre o autoritarismo e o nacionalismo...grandes flagelos!! Veja a postura ainda superior dos generais. E o fato da multidão ser composta, na sua maioria, por mulheres? Também não foi um determinante para aquela situação? Se bem que hoje em dia vemos de tudo neste mundão!!!
ResponderExcluirPrezada Denérida
ResponderExcluirObrigado por seu comentário!
Você esmiuçou e resumiu bem a situação; de fato, a descrição de Yevtushenko mostra um quadro chocante, e a presença quase que apenas de mulheres (pois os homens estavam, em sua maioria, nos campos de batalha) pode, sim, ter sido decisiva para o desfecho, com o reencontro da humanidade "esquecida".
O ser humano é muito complexo, e não podemos apelar para o simples maniqueísmo.
Até mais!