quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Gonzaga Blantez, "Parente"

“Apenas peço me dês
O beijo que eu tanto quero
Teu corpo dance em compasso
Dois por quatro de um bolero”
Gonzaga Blantez e Aníbal Beça, “Canção Antiga”

Gonzaga Blantez, "Parente", 2009. Contato: (92) 8238-3545, gonzagablantez@gmail.com

Com o texto de hoje, começo a enveredar por um caminho que nunca trilhei: a crítica musical. Obviamente, não se trata de crítica profissional, pois nada entendo de música: não toco nenhum instrumento, não entendo de andamento ou coisa parecida, nem mesmo conheço as notas musicais – não sei distinguir um dó de um ré... ou de uma ré, aquela marcha presente nos veículos automotores. Aliás, isto me faz lembrar de que, quando eu era criança da escola primária e morava na Vila Dalva, bairro do Rio Pequeno, São Paulo, tínhamos ali um vizinho com o curioso apelido de Marcha-à-Ré, ou simplesmente Marcha-Ré; até hoje não sei o porquê do nome, também nunca encontrei outra pessoa com tal apelido...
Nada sabendo eu de música, portanto, insiro-me no enorme grupo, majoritário neste mundão de Deus, das pessoas que em relação à música só fazem uma coisa: ouvi-la e dizer se é boa ou não, claro está que de forma totalmente subjetiva. Darei aqui minha opinião sobre um disco, opinião, como sói ser, totalmente pessoal, como o são as opiniões – é bom que se guarde isso. Não analisarei as faixas uma a uma, nem proporei interpretações, ortodoxas ou não, das letras; trata-se apenas de minha impressão sobre o conjunto e algumas partes dele, cabendo aos interessados, depois, ouvir, desfrutar e classificar por si mesmos. Mas tenho a certeza de que os que ouvirem gostarão também.
O CD que comentarei hoje é “Parente”, de Gonzaga Blantez, cantor, músico e compositor natural de Alenquer, Pará, o qual vive há anos em Manaus, Amazonas; já lançou vários álbuns e, segundo o sítio Som do Norte, prepara o lançamento de novo disco. Estive em Alenquer no início do mês, e comprei “Parente” no Museu da Cidade de Alenquer, ao preço de R$10,00, junto com outras lembrancinhas que se vendem por lá. (Em texto vindouro pretendo falar um pouco sobre essa aprazível cidade do Oeste do Pará.)
Começo dizendo que, para aqueles que pouco conhecem a música produzida na Amazônia, o disco é uma grata surpresa. Explico-me: nós do Sul e Sudeste estamos acostumados a ouvir (falar sobre) Calypso, as toadas dos bois de Parintins, o carimbó, Sebastião Tapajós (este parece ser mais conhecido e respeitado fora do Brasil do que no país natal)... é o que nos chega pela mídia, e tendemos a pensar que é só o que há por aqui. É uma linha de pensamento pobre, reduzida e reducionista, reconheço, mas baseada nos dados disponíveis. Muda-se depois de opinião – ou melhor, toma-se conhecimento da realidade quando ela nos é apresentada. Ouvi primeiramente algumas canções de Gonzaga Blantez na programação da rádio Rural de Santarém, e gostei delas; procurei os discos, mas é difícil encontrá-los, pois uns estão esgotados, já outros são vendidos em pontos alternativos – em sua maioria, os artistas da região, como outros deste vasto país, sofrem com a dificuldade de distribuir e tornar conhecida sua produção. A Internet, porém, tem contribuído para corrigir um pouco esta injustiça.
O nome do disco, “Parente”, refere-se a tratamento comum na região amazônica, em que a palavra não designa apenas pessoa a que se é ligado por laços de sangue; é também, como se diz na capa do disco, “expressão usada para dirigir-se carinhosamente a um amigo ou conhecido”. O disco apresenta 12 faixas, quase todas de autoria de Blantez ou em coautoria, à exceção da faixa 11, como se vê na reprodução da contracapa, abaixo. A apresentação do disco é bem simples: nada de estojo, apenas um envelope de papel-cartão, com os dados do álbum reproduzidos no verso, inclusive as faixas, mas sem encarte, o que é uma pena: o Prof. Pasquale Cipro Neto diz que devemos ouvir canções com a letra delas na mão, acompanhando-as verso a verso para melhor fruí-las, e o disco que comento aqui não é exceção.


As canções de “Parente” inserem-se naquilo que se convencionou chamar Música Popular Brasileira, MPB – classificação que sabemos bastante genérica. Mas trazem, como seria de esperar, uma marca, um tempero local, engastado na forma de expressões regionais ou referências a fatos amazônicos, nas letras; ou no ritmo que, tocado ao violão e com outros acompanhamentos, confere às canções uma sonoridade especial, a um tempo familiar e exótica.
Ao contrário, porém, de outro tipo de produção musical que se encontra na Amazônia, as canções de Gonzaga Blantez fogem aos lugares comuns que se ouvem aqui e ali. Parte do cancioneiro atual da Amazônia firma-se em temas ligados às transformações que a região vem sofrendo nas últimas décadas: o desmatamento, o avanço do agronegócio, a chegada de levas de migrantes, a ameaça ao modo de vida tradicional, o risco de contaminação dos rios, os conflitos dos índios com exploradores de madeira e garimpeiros, a expansão de novas religiões, o contato com as novas tecnologias etc.; repetem-se, à exaustão, clichês como: “não deixe o rio secar, não deixe a mata queimar, não deixe nossa terra morrer”, “falta farinha na nossa cuia, cadê o peixe dos meus curumins”, “mamãe, não me mande para o Camboja, por que lá não tem macaxeira” e coisas que tais. Não digo que sejam temas ruins, são temas como outros quaisquer e espelham a realidade vivida pelos povos amazônicos de hoje... mas como cansa ouvir isso o tempo todo, como uma ladainha, uma lamúria sem fim contra o avanço do capitalismo! Realmente maçante...
Já as canções de Gonzaga Blantez, como disse, fogem de modo geral ao uso desses clichês e poderiam ser interpretadas por cantores de outros pagos lusófonos, sem se recair em classificações regionalistas. Será por estar ele residindo há vários anos em Manaus, uma cidade com ares mais cosmopolitas e influenciada pela presença de empresas multinacionais, trabalhadores de outros pontos do Brasil e do exterior, e onde as influências culturais, musicais são mais intensas e variadas, também pela presença de artistas de outras origens, influenciando(-se) uns aos outros? Seja como for, ainda que tais influências não sejam descartadas, os fatores principais são sempre o Eu e a vivência do próprio artista, com seus característicos e sensibilidades.
Além da voz de Gonzaga Blantez, bem acompanhada do violão e outros instrumentos, as canções destacam-se pelas letras bem compostas, tratando do amor e de coisas do cotidiano numa perspectiva popular e informal em que os jogos de palavras chamam a atenção. Há, como dito acima, e como não poderia deixar de ocorrer, referências à Amazônia, mas a temática vai muito além de suas fronteiras.
Inicia-se com a faixa “Bandido”, gostosa – e até dançante – canção que joga com as ambiguidades do termo bandido, que nela não é um criminoso, mas um sofredor que “vive pouco e não tem tempo a perder”, devendo ser amado sem demora, “sem drama”:
“E o amor é o bálsamo
Que alivia minha dor
Bandido também sofre por amor”
A ambiguidade – pelo menos aparentemente – está também na segunda faixa, “A minha mulher”, notável pela confusão de termos contraditórios que se encadeiam: o poeta diz à mulher que vai fazer carinho “com a sola do meu sapato”, “com a seda das minhas unhas de aço”, “com o cabo da tua vassoura pintado com as cores do meu time”, “com a tampa da panela de pressão, onde você cozinha e sempre amolece o feijão e o meu coração”, “vou te cobrir com rosas de espinhos macios, que a roseira das minhas mãos deixa um caminho de plumas ferindo carícias no teu coração” etc. Ao mesmo tempo romântica e bem-humorada, esta canção é na verdade uma crítica contra a violência doméstica, caindo bem num estado, o Pará, que ocupa as primeiras posições no ranking da violência doméstica e contra a mulher, incômodo troféu que ninguém deseja ostentar.
“Na linha de fogo”, terceira faixa, apresenta um cidadão tipicamente brasileiro na luta do dia a dia, “perdido no meio do fogo cruzado”, que não tem “ganho, coitado, nem bingo de arraial”; se atira para o alto “o céu tá deserto, não acerto nem nuvem, imagine urubu” – é de espantar, levando-se em conta que os urubus são muito abundantes na Amazônia, gozando da proteção que têm por serem aves nativas (em alguns lugares são bem mais numerosos, por exemplo, do que os incontáveis pombos da Praça da Sé de São Paulo). É um tema nacional e até universal, vestido de roupagem local, inclusive com referências ao maior clássico futebolístico amazônico, o confronto do “Papão da Curuzu na briga feia com o Leão Azul” (Paysandu X Remo): "não sei se corro ou se peço socorro, na hora que o bicho pegar".
As canções seguem-se, e na faixa 9, “Surubiú”, faz-se uma homenagem a Alenquer, por meio do rio junto ao qual a cidade surgiu, no século XVII – Surubiú foi também o primeiro nome colonial da localidade, antes de receber o atual. O termo é de origem tupi: surubi-‘y = “rio dos surubins”.
Destaca-se ainda a belíssima e mui poética “Canção Antiga”, faixa 10, que considero a melhor do disco e que ouvi e reouvi com emoção:
“E antes que a tarde se vá,
Eu quero morrer nas cores
De intenso vermelho vivo
Sem me importar com temores
Quero morrer nos teus braços,
Tranquilamente sereno
Senhora da minha vida,
Meu remédio e meu veneno,
Quero morrer todo dia,
Eu quero morrer de amor
Apenas peço me dês
O beijo que eu tanto quero
Teu corpo dance em compasso
Dois por quatro de um bolero”
Que beleza de versos! É difícil até comentar, tamanho o inusitado das metáforas, em que não se sabe se morre o dia ou se se morre de amor, ou ambas as coisas...
O disco termina com a animada “Vira-lata”, em que o poeta, após cair “nas garras da felina”, devido ao “instinto animal”, torna-se “seu bichinho bonzinho”. Vale a pena reproduzir aqui todo o texto:
“Juro que não tive a intenção
De magoar seu coração
Foi o meu instinto animal,
Me jogou num erro fatal,
Caí nas garras da felina
Sou o seu ciúme, sou seu mimo,
Eu sou seu bichinho bonzinho
E quando ando arredio,
Eu viro um cachorro vadio,
Perco o valor e a razão
Sei que eles vão me chamar
E vão me rotular até de vira-lata
Mas não me importo, afinal,
Minha raça é que tem essa graça,
Que ela se orgulha e canta feliz,
Pedigree, pede bis,
Da minha sedução,
E diz que eu sou seu pastor-alemão”
É o amor vencendo a razão e levando o homem ao instinto animal, ou a vitória do sentimento sobre as divisões sociais: cão vira-lata ou desqualificado social para uns, mas verdadeiro animal de pedigree ou vencedor para a amada – e é isto o que importa!
Bem, amigos... Todas as canções deste disco de Gonzaga Blantez inserem-se na mais pura tradição da MPB, tanto em relação à melodia quanto às letras bem elaboradas, verdadeiros poemas cantados, não devendo nada aos conhecidos medalhões de nosso cancioneiro. É um álbum que com certeza ninguém ouvirá e permanecerá impassível.
Termino com a esperança de que as novas mídias eletrônicas continuem ajudando o Brasil a conhecer melhor a si mesmo, para que Gonzaga Blantez e outros artistas se tornem mais conhecidos fora de suas regiões e tragam mais deleite aos brasileiros e ouvintes de nossa boa música.

Este texto foi produzido e postado por meio de softwares livres: sistema operacional Linux Mint 13 Maya LTS; processador de texto LibreOffice 3.5.3.2; navegador de Internet Mozilla Firefox 13.0.1.
Conheça, prestigie, divulgue o software livre.

2 comentários:

  1. Olá, Júlio, obrigada pela visita à Biblioteca de Jacinto. Gostei de ver o teu blogue, a música brasileira que chega à Europa, actualmente, é muito comercial, muito "Bossa Nova requentada" que já não tem nada a ver com a criatividade genial e transbordante de Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina ou Nara Leão. É bom saber que existem outras coisas. Volta sempre. Eu vou voltar.

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  2. Prezada MCA
    Obrigado pela sua visita. Volte sempre!
    De fato, o Brasil é muito maior do que parece, inclusive da perspectiva artística. Como não sou crítico musical, direi apenas que há muita coisa escondida, e um pequeno grupo, devido a certos fatores, ocupa todo o espaço sob os holofotes, pouco espaço sobrando para novos artistas, que precisam esforçar-se muito para conseguir um lugarzinho ao sol.
    Sou originário do Sudeste Brasileiro, sede das grandes redes de mídia, e o que nos chega por lá (e de lá para o mundo, geralmente) é muito pouco do Brasil real e já pasteurizado e filtrado.
    Dado o seu interesse pela música brasileira, sugiro que visite o sítio do Som do Norte (http://somdonorte.blogspot.com.br/), voltado para a música da Amazônia, e o do Grupo Imbaúba (http://www.imbauba.art.br/); você encontrará canções para ouvir em linha e até para descarregar - são coisas pouco conhecidas fora da região, e bem distantes da "Bossa Nova Requentada".
    Até mais!

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