Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
Castro Alves, O Livro e a América
No
dia 4 de julho de 1971, o americano Michael Stern Hart recebeu um presente
inusitado: uma cópia impressa de distribuição gratuita da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Aquilo
lhe deu uma ideia: digitar o texto no computador (um Sigma V da Xerox, com a
espantosa memória de 16K!) que ele usava num laboratório na Universidade de
Illinois e distribuí-lo através da rede interna de computadores da
universidade, e daí para as demais universidades e bibliotecas conectadas à Internet
– que já existia havia alguns anos, mas era muito diferente e bem menos
abrangente do que é hoje; o filme War
Games (“Jogos de Guerra”, 1983) dá-nos uma ideia do que
era a Internet comercial e doméstica por volta de 30 anos atrás.
Estava então criado o livro eletrônico, ou e-book.
E os que receberam pela rede o arquivo da Declaration
of Independence fizeram a primeira descarga (ou download, como queiram) conhecida de um livro eletrônico! Tornava-se
realidade o que até ali era apenas um elemento de ficção científica, como
visto, por exemplo, nos episódios de Jornada
nas Estrelas.
Depois
daquele título pioneiro, vieram outros: a Bíblia,
Aventuras de Alice no País das Maravilhas,
obras de Shakespeare, Homero, Melville... Nascia assim a biblioteca digital livre Project Gutenberg, a primeira
e mais conhecida iniciativa de produção e distribuição de livros eletrônicos, baseada
em arquivos de texto (.TXT), leves e de fácil armazenamento e transmissão, podendo
depois ser postos em outros formatos, como o PDF. O Projeto Gutenberg apostava
na Internet – à época, recém-criada e em lenta expansão – para a difusão gratuita
da literatura. A aposta, como vimos, mostrou-se vencedora.
Por
cerca de 25 anos, Hart trabalhou sozinho, digitalizando em média 1 livro por
mês, até que a explosão da informática e da Internet e o surgimento da World Wide
Web, trazendo maior facilidade de contato e distribuição dos arquivos eletrônicos, possibilitaram
a chegada de voluntários de diversas partes do mundo, multiplicando muitas
vezes o número de títulos e línguas do catálogo. Hoje o Projeto Gutenberg
possui quase 50.000 títulos em mais de 60 línguas.
O
catálogo possui textos em domínio público e outros publicados com autorização
dos autores. A maior parte do acervo é constituída de títulos em inglês (cerca
de 34.000 títulos); a língua portuguesa está representada com 539 obras, dentre
as quais Os Lusíadas, de Camões, Como e por que sou Romancista, de José
de Alencar, inúmeras obras de Camilo Castelo Branco, João de Deus, Júlio Dinis,
Alexandre Herculano, Guerra Junqueiro, além de muitas raridades, como o hilário
Álbum Chulo-Gaiato, as Trovas do Bandarra e textos de autores
pouco conhecidos na atualidade, como o paraense João Marques de Carvalho
(1866-1910), do qual estão disponíveis Contos
do Norte, Contos Paraenses e Entre as Ninfeias.
O
português é a sétima língua do catálogo em número de títulos, superada, além do
inglês, pelo francês (2.593), alemão (1.306), finlandês (1.143), holandês (710) e italiano (639), e
à frente, entre outras línguas, do espanhol (464) e chinês (410). O latim está presente com 95 títulos; o esperanto, língua internacional planejada
lançada em 1887 por L. L. Zamenhof, está presente no catálogo com 104 obras.
Hoje completam-se 4 anos da morte de Michael S. Hart, que tinha 64
anos e vinha trabalhando havia 4 décadas na digitalização e divulgação de livros. Seu falecimento,
ocorrido em 6 de setembro de 2011, foi noticiado em vários meios de
comunicação, inclusive no Brasil, e muito lamentado. Teotônio Simões, no sítio www.ebooksbrasil.org, foi sucinto e
direto ao noticiar a morte de Hart, chamando-o “um ser humano exemplar”. Creio
que Michael Hart tenha partido com a sensação de dever cumprido. Sua iniciativa
rendeu ótimos frutos e tornou mais fácil o acesso a textos aos quais, de outro
modo, as pessoas ficariam alheias.
A
Internet é uma das maiores criações da humanidade em todos os tempos, e talvez
a principal das últimas décadas, possibilitada que foi pelas descobertas dos últimos
séculos, desde que o domínio da eletricidade permitiu a criação e operação de
máquinas capazes de transmissão de dados por cabos, e depois sem eles.
Mas ela é também – pelo menos no momento – um dos pontos de culminância de
um longo processo que se iniciou há muito tempo, quando aqueles nossos
primeiros ancestrais, peludos, sujos e fedorentos, de baixíssima expectativa de
vida, perderam o medo do exterior e resolveram sair da caverna para ver o que
havia fora dela; desde que perderam o medo do fogo e resolveram acendê-lo por
conta própria, sem esperar que algum raio fizesse arder uma árvore ou que
alguma divindade o trouxesse; desde que observaram os ciclos da natureza e
viram que podiam plantar seu próprio alimento, sem precisar sair em busca dele,
e criaram as cidades; desde que olharam para o céu noturno e, sem o saber,
criaram a astronomia – que nos permitiria compreender a mecânica celeste e
de todas as coisas – e sua irmã de maior apelo popular, a astrologia – que surpreendentemente
ainda sobrevive, feliz e ditosa, contrariando o vaticínio de homens de ciência
de diversas épocas.
A
Internet trouxe ainda consigo, além da possibilidade de comunicação praticamente
imediata, alguma liberdade de escolha para a difusão da cultura. Enquanto os
grandes grupos e lobbies editoriais e
culturais ditam o que devemos ler e ouvir, anônimos abnegados dedicam seu tempo
a resgatar, do poço do esquecimento, obras escritas e audiovisuais às quais, de
outra forma, jamais poderíamos ter acesso. Poetas e filósofos, cronistas e
cientistas, musicistas e cantores, como novas fênix, renascem das cinzas da
história, reavendo o único e verdadeiramente sagrado direito que todo autor
tem: o de ter sua obra disponível às pessoas para ser lida, vista, ouvida.
A
civilização mundial que se começa lentamente a construir requer liberdade de pensamento e de difusão do
pensamento, e os primeiros passos em busca dessa civilização foram dados
por pessoas como Michael Stern Hart, as quais enxergaram muito além de seu
tempo.
Miremo-nos
em seu exemplo.
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