terça-feira, 11 de setembro de 2012

Da Bielorrússia à Geórgia

Mapa (em inglês) com parte da Europa e Cáucaso, mostrando alguns dos estados originados do esfacelamento da URSS e da Iugoslávia.
Fonte: 
http://map-europe.blogspot.com.br/2013/01/eastern-europe-regions-map-detail.html.
I. Em 1991, o mundo acompanhou a tentativa de golpe da linha dura soviética contra Mikhail Gorbachov, além dos canhonaços a mando do presidente da República da Rússia, Boris Yeltsin – diz-se que este não estava nada sóbrio –, em defesa da ordem vigente. O governo de Gorbachov não caiu ali, mas de nada adiantou, pois meses depois ocorreu a fragmentação da União Soviética. De um dia para o outro… Dosvidániya! Sumiu do mapa uma das potências que polarizavam as forças político-econômicas do mundo de então, e surgiram 15 repúblicas, cada uma com sua(s) língua(s), sua capital, sua moeda etc.

Após quase 25 anos, muita coisa mais mudou no mapa-múndi: uma província da Etiópia desmembrou-se, formando a Eritreia; tornou-se independente Timor Leste, menor e mais jovem país de língua oficial portuguesa; a Tchecoslováquia desmembrou-se em Eslováquia e República Tcheca; a Iugoslávia fragmentou-se também, de forma muito violenta; o Sudão cindiu-se em dois, surgindo daí o Sudão do Sul; e a ex-república soviética da Geórgia luta ainda hoje contra separatistas de províncias que também querem dela desmembrar-se para juntar-se à Rússia – ou, se puderem, cortar de vez o cabresto que as liga a esta.

Só não mudou a confusão que toma conta da imprensa brasileira com relação aos nomes de novos estados que surgiram após 1991: conforme o jornal, seja ele impresso ou virtual, transmitido por rádio ou televisionado, o nome de um único país pode ter várias grafias e pronúncias diferentes, com ou sem acento gráfico. Vêm-me à mente, neste momento, as ex-repúblicas soviéticas da Bielorrússia e Moldávia.

Essa imprecisão e descuido no uso de nomes geográficos atrapalha muito os leitores, principalmente os estudantes, que passam a ter dúvidas quanto às formas corretas; mais espantoso ainda é o fato de que, em quase todos os casos, tudo isso poderia ser evitado – pelo menos em parte – com a simples consulta a uma boa enciclopédia ou ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, também conhecido como VOLP, da Academia Brasileira de Letras.

II. Os nomes das duas ex-repúblicas soviéticas que cito acima – Bielorrússia e Moldávia – são os mesmos que todos aprendemos quando estudamos geografia (eu os aprendi ainda na década de 1980) e encontram-se nos dicionários, enciclopédias e na maior parte dos órgãos de imprensa. Alguns dos principais jornais brasileiros, porém, teimam em manter as formas Belarus e Moldova, tomadas do inglês, o que causa confusão nos leitores e nos estudantes, que ficam sem saber a forma correta desses nomes em português.

Devido à sua ortografia predominantemente etimológica, a língua inglesa e a francesa tomam de empréstimo palavras estrangeiras sem alterar-lhes a grafia, apenas adaptando a pronúncia delas a seu sistema fonológico; por isso a quase total imprevisibilidade da pronúncia e da grafia do inglês, principalmente, o que exige sua indicação nos dicionários e enciclopédias naquela língua. Não é o caso do português, que, apesar de sua grafia em parte etimológica (em que as palavras são grafadas de acordo com a grafia da língua de origem), possui normas bem definidas quanto aos demais casos.

Exemplifico: grafamos a palavra rosa com S porque era assim grafada em latim, ainda que a pronúncia fosse diferente da nossa; o mesmo para gesso, exército, mesa, cedo, Egito, Escócia (de gypsum, exercituum, mensa, citu, Aegyptus, Scotia, respectivamente, dos quais aquelas palavras vieram através do latim, seja o vulgar ou o clássico). Por isso, muitos nomes geográficos, principalmente os mais antigos e tradicionais, já possuem forma vernácula portuguesa, ou podem vir a tê-la, de acordo com nossas normas ortográficas. O fato de alguns nomes terem sido deixados de lado pela imprensa nos últimos anos não impede que as formas vernáculas sejam empregadas: as cidades alemãs de Estugarda, Francoforte e Lípsia são mais conhecidas no Brasil por seus nomes alemães: StuttgartFrankfurt e Leipzig, respectivamente, enquanto os nomes tradicionais continuam a ser usados em Portugal – assim como os falantes de inglês, francês e espanhol, os portugueses não têm vergonha de sua língua – que também é a nossa, até prova em contrário.

Lembro-me bem de, num mesmo canal de televisão, durante a Olimpíada de Pequim (2008), ter ouvido e visto a Bielorrússia ser chamada assim e de outras duas formas diferentes: Belarus (oxítona) e Belárus (paroxítona, grafada com ou sem acento gráfico). Quatro anos depois, na Olimpíada de Londres, o caso repetiu-se.

Os bielorrussos são um povo eslavo, e formam com os russos e ucranianos, seus parentes mais próximos, um dos subgrupos linguístico-culturais eslavos (as três línguas são escritas com letras cirílicas, assim como o búlgaro, o macedônio e o sérvio). A Bielorrússia (ou Rússia Branca, como se dizia antes) é assim chamada – entre outras hipóteses – por não ter seu território caído sob o domínio mongol ou tártaro (donde viria uma suposta pureza étnica eslava, sem miscigenação com povos conquistadores não eslavos).

Não imagino o que pode ter levado jornalistas a desprezar a forma já consagrada Bielorrússia, empregada nos livros escolares, dicionários, enciclopédias e obras de referência, para adotar a grafia Belarus; é possível que se tenha traduzido (e mal) uma notinha em inglês de alguma agência internacional, e o desconhecimento (?!) do assunto, aliado à falta de consulta de uma enciclopédia em português – costume bem arraigado em nossa cultura, pois temos pouca intimidade com dicionários e obras de referência –, teve como resultado esta barafunda toponímica.

III. Diga-se o mesmo do nome da Moldávia, país de língua e cultura predominantemente romenas: é parte do território conhecido em outros tempos como Bessarábia; no início do século XX a porção de língua romena juntou-se à Romênia, sendo mais tarde anexada pela União Soviética e formando a República Socialista Soviética da Moldávia. Tornou-se independente em 1991.

É difícil entender o porquê do uso do nome Moldova na imprensa brasileira atual, se até em histórias em quadrinhos se registrava a forma vernácula portuguesa. Lembro-me de quando, na adolescência, lia gibis (revistas em quadrinhos) de super-heróis, dentre os quais os das personagens da DC (Detective Comics). A personagem Jason Blood (criação de Jack Kirby), um estudioso de ciências ocultas e misticismos diversos, alter-ego de Etrigan, transformava-se neste ser demoníaco ao proferir certo encantamento:
“Abandone a forma humana vilã, erga-se o demônio Etrigan!”
Esta personagem tinha ligações com certo castelo Branek, situado no coração da… Moldávia! As editoras Ebal e Abril, ao editar suas revistas, usavam a forma Moldávia, não Moldova, que só entrou em português brasileiro na década de 1990 e porque, assim como Belarus, é a forma usada em inglês.

Diga-se, de passagem, que ambas as editoras, principalmente a Abril, neste quesito, eram irrepreensíveis: suas publicações em quadrinhos, além da qualidade gráfica, primavam pela excelência do texto, bem traduzido, bem redigido e com muita criatividade – como se via nos procedimentos de tradução e adaptação dos nomes de personagens de editoras estrangeiras, como Marvel, DC e Disney. Mas a EBAL, lamentavelmente, extinguiu-se há 20 anos, e quanto à Abril, não sei como andam as coisas por lá hoje, pois deixei de ler histórias em quadrinhos…

Imagino dois focas (ou nem tão focas assim) numa redação, recebendo por fax, telex, videotexto – ou pelo correio, mesmo, quem sabe (ora, era assim que se comunicava antes da Internet!) – a notícia da queda do regime dos sovietes… (Alguém ainda se lembra do que era isso?) Junto vem um mapa, feito nos States, com a divisão política surgida. Alguém exclama, embasbacado com a novidade, esquecido (!?) das aulas de geografia do ginásio e colegial (atuais 2° ciclo do ensino fundamental e ensino médio, respectivamente):
– “Puxa! Você sabia que a União Soviética era constituída de 15 repúblicas?”
– “Nããããão… Puxa, que diferente! O que está escrito aqui? BélarusBelárrius?”
– “E aqui: MóldouvaMoldouva?”
– “Sei lá… Mas vamos escrever isso aí mesmo, é o que os gringos usam. Fica maneiro.”
– “Só…”

E assim a confusão se propaga…


Mapa do Cáucaso, em que se veem a Geórgia, Abcázia, Ossétia do Sul e Chechênia, além de outras áreas em constantes conflitos étnicos. Fonte: Wikipedia.

IV. Mas voltemos ao que nos interessa.


Bandeira da Chechênia.
Fonte: Wikipédia.
Vê-se também aqui e ali a forma Tchetchênia (com pronúncia imitada do inglês), desnecessária, pois a forma vernácula portuguesa é Chechênia.  Esta é uma república que faz parte da Federação Russa e enfrenta um forte movimento que deseja separá-la da Rússia e formar um estado independente. Outra palavra na mesma situação é Chuváchia, nome de outra república russa, a qual vemos grafado também como Tchuváchia.

Mas por que devemos dizer e escrever Chechênia e não TchetchêniaChuváchia e não Tchuváchia? O som representado em inglês e espanhol pelo dígrafo CH, em italiano por CI, em francês por TCH e em alemão pela sequência TSCH, não existe como fonema em português, ocorrendo apenas como variante (alofone ou alófono) posicional do fonema /t/ no português falado em certas partes do Brasil, como RJ, MG, ES, partes de SP e de estados do Norte e Nordeste.

No português falado nessas áreas brasileiras, quando o fonema /t/ vem seguido de /i/ (ou de um /e/ átono que se reduziu a [i]), ele assume a forma sonora variante [tch], como nas palavras tio, pátio, Tiago, títere, tinto, batida, vítima, ático, leite, que são pronunciadas como [tchiu], [pátchyu], [tchiagu], [tchíteri], [tchintu], [batchida], [vítchima], [átchiku], [leytchi]; em outros locais, o /t/ assume a forma [tch] quando vem precedido de /i/: oito, dezoito, biscoito, eita soam como [ojtchu], [dezojtchu], [biskoytchu], [eytcha], o que constitui um fenômeno mais raro; sei que ocorre (ou ocorria) em alguma parte de Pernambuco, pois conheci pessoas do interior daquele estado cujo dialeto apresentava essa variante de /t/.

(Nota: Esse [y] representa o /i/ átono e breve de palavras como /pai/, /leite/ etc. Nas transcrições, usando algumas combinações gráficas, procurei facilitar a compreensão das representações fonéticas para os não versados em fonologia e fonética.)

Portanto, palavras que nas línguas acima e em outras apresentam esse som TCH mantêm, em português, a grafia com CH, como cheque (palavra originária do inglês check), pelo que a pronúncia é como a de chave. As exceções, além das variantes regionais de /t/ citadas acima – variantes de pronúncia, não de grafia –, são: tchê (do espanhol platino che), tchau (do italiano ciao) e o substantivo-adjetivo tcheco (a) e seus derivados (por imitação da pronúncia e grafia francesas tchèque); neste último caso há as formas mais antigas checo (a)Checoslováquia etc., menos usadas, porém, e também corretas e registradas nos dicionários e vocabulários da Academia Brasileira de Letras.

O mesmo procedimento devemos ter, então, com os nomes Chechênia, checheno (a), Chuváchia, chuvache e derivados, além de outros casos análogos: mesmo que a pronúncia original seja com o som [tch] (em russo as pronúncias são, respectivamente, Tchétchniya, e Tchuváchiya, aproximadamente), devemos grafar sempre com CH, pronunciando à maneira portuguesa.

As formas portuguesas são, portanto, com CH: ChechêniaChuváchia.

V. Para concluir, falemos da Geórgia, outro país que voltou a ocupar as manchetes e o interesse internacional há alguns anos (não confundir com o estado norte-americano homônimo), devido a duas de suas regiões autônomas se terem declarado, de forma unilateral, independentes: Ossétia do Sul e Abcázia. Quanto a esta, costumam-se encontrar também em português as grafias AbecáziaAbcásia e Abecásia, o que mostra haver ainda muita confusão quanto à forma oficial em nossa ortografia; os órgãos competentes, entre eles a Academia Brasileira de Letras, ainda não se manifestaram sobre o assunto, se é que um dia o farão.


Brasão de armas da Abcázia.
Fonte: Wikipedia.
Seja como for, as formas com Z são condizentes com o étimo russo, cuja transliteração é Abkháziya, donde veio a forma inglesa Abkhazia, empregada desnecessariamente no Brasil; as formas com S remetem, possivelmente, ao nome latino da região, Abascia. Como não existe em português o fonema russo representado nas transliterações internacionais pelo dígrafo KH (existe em espanhol, representado por J: mujer, jamón, eje, Alejo), devemos, em português, reduzi-lo a C, neste caso. Em espanhol se grafa Abjasia, em italiano Abcasia, o que talvez seja também a explicação para as formas portuguesas com S, como nestas línguas-irmãs do português.

Como se resolve tal impasse? O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) registra a forma gentílica abcázio, com Z, o que significa que o nome desse país em português deve ser Abcázia, também com Z, portanto, e mais próxima do étimo.


O nome da Geórgia em georgiano, língua do país, é Sakartvelo, e em russo é Grúziya. Os georgianos são um povo de origem caucásica e majoritariamente cristão ortodoxo, que habita há mais de 2.000 anos aquela região entre a Rússia e a Turquia, que lhe disputaram o território e hoje buscam expandir sua influência ali. A língua georgiana não teve, até o momento, seu parentesco relacionado a outras línguas, permanecendo com classificação isolada.


Bandeira da Geórgia, com cruzes de São Jorge.
Fonte: Wikipedia.
O nome Geórgia, usado nas línguas europeias ocidentais para designar aquele país, possivelmente lhe foi dado devido à grande difusão ali do culto a São Jorge, que segundo a tradição ortodoxa foi introduzido na região por Santa Nina da Geórgia, nascida na Capadócia, como São Jorge, e tida como sobrinha deste santo. São Jorge é o padroeiro do país – assim como nos países católicos romanos, é santo muito popular nos países católicos ortodoxos.

O georgiano mais famoso foi certo Ioseb Besarionis dze Djughashvili, mais conhecido como Josef Stalin.


Um dos mais belos alfabetos, o georgiano, com uma transliteração em caracteres latinos.
Fonte: http://www.mochileiros.com/georgia-nao-o-estado-americano-mas-o-pais-do-caucaso-t102487.html.

Santarém, Pará, 11/9/2012. Editado em 14/9/2015.

Leia também: Hóquei, handebol e hanseníase.

2 comentários:

  1. Caro, excelente texto, parabéns. Apenas um comentário: você diz que a Academia Brasileira de Letras ainda não decidiu a forma certa de aportuguesar Abkhazia, se é que um dia o fará, etc - na verdade, já está feito há muito tempo: basta entrar no Vocabulário Ortográfico da ABL (o VOLP) e lá verá "abcázio", única forma aceita, em consonância também com o Vocabulário Onomástico da ABL (este infelizmente sem versão na internet) que registra os nomes dos lugares do mundo e registra desde sempre apenas "Abcázia". O novíssimo Grande Houaiss digital também já traz abcázio como habitante da Abcázia. A tristeza é ver que essa forma sem nenhum respaldo histórico nem razão etimológica, "Abecásia", se espalhando pela internet só porque é a que inventaram na Wikipédia quando da guerra da Abcázia em 2008. Fica a dica, aliás: se puder, ajude a divulgar - Abecásia nunca existiu nem existe, viva a Abcázia!

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    1. Obrigado pela leitura atenta e comentário.
      Você tem razão, se existe a forma gentílica "abcázio", logo podemos formar a partir dela o topônimo ABCÁZIA, o que resolve a questão.
      Fiz umas alterações no texto, a partir de seu comentário.
      Grato mais uma vez. Volte sempre!

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