segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Souzel, Sousel: um caso de toponímia popular

O povo conhece seu vocabulário.
Câmara Cascudo, Locuções tradicionais do Brasil/Coisas que o povo diz

Chama-se toponímia a disciplina que estuda os topônimos (nomes próprios de lugares). O termo é formado dos elementos gregos tópos (=lugar) e ônoma (=nome); juntamente com a antroponímia (estudo dos nomes próprios de pessoas, de ánthropos =homem, pessoa), a toponímia forma a onomástica (estudo dos nomes próprios em geral), que por sua vez é uma disciplina da linguística geral.
O termo toponímia pode ser empregado também com valor coletivo, para designar um conjunto de topônimos com um ou mais característicos comuns. Assim, a toponímia brasileira (conjunto dos topônimos brasileiros), toponímia paulista, toponímia paraense, toponímia tupi (topônimos originários da língua tupi), toponímia afro-brasileira (topônimos brasileiros de origem africana) etc.
A toponímia popular pode ser descrita como o conjunto dos processos populares de nomeação de lugares; o termo opõe-se à toponímia oficial, porquanto se refere, aquela, aos topônimos correntes, populares, surgidos do trato comunitário e das necessidades do dia a dia; os topônimos populares são nomes paralelos àqueles que constam registrados em documentos do governo ou de outras instituições, e portanto não correspondem aos nomes oficiais, dados por autoridades em circunstâncias pomposas e solenes, ou simplesmente sancionados por meio de instrumentos legais. Assim, a toponímia popular de uma região é também o conjunto dos topônimos caracterizados por sua origem e uso popular; muitos desses topônimos, mesmo depois de substituídos por outros oficiais, continuam em uso, por diversas razões, práticas ou afetivas; é o caso do topônimo que motivou este artigo.
Senador José Porfírio é um município da região central do Pará, situado às margens do rio Xingu, nas imediações de Altamira. A localidade surgiu no período colonial, a partir de um aldeamento indígena sob a direção de padres jesuítas. Mais tarde, recebeu o nome de Sousel época grafado Souzel, embora a forma com S seja a mais adequada, por estar de acordo com a etimologia), em homenagem a uma vila portuguesa; tal fato foi comum na segunda metade do século XVIII, quando o Estado do Grão-Pará e Maranhão era governado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do marquês de Pombal.


Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal (1699-1783), retratado por Louis-Michel van Loo

No âmbito da política portuguesa de ocupação e posse da Amazônia, os aldeamentos indígenas foram transformados em vilas, e seus nomes indígenas substituídos por nomes portugueses: assim, a aldeia dos Tapajós tornou-se Santarém; Surubiú tornou-se Alenquer; a aldeia dos Pauxis é a atual Óbidos; a dos Boraris tornou-se Alter do Chão; a aldeia dos Jamundás ou Nhamundás tornou-se Faro; surgiram Barcelos, Monte Alegre, Aveiro, Soure, Ourém, Boim, Porto de Moz (ou Mós, melhor, por mais de acordo com a etimologia) e muitas outras vilas, com nomes tirados da toponímia lusa, à beira do Amazonas e seus tributários, como o Tapajós. Não se tratava, porém, de simples capricho, pois que, nome por nome, é sempre melhor manter o tradicional para não atrapalhar as comunicações.
A explicação para o procedimento de Mendonça Furtado é muito simples, e tão antiga quanto a história humana: a necessidade de dar nomes às coisas para garantir o domínio sobre elas. na Bíblia vemos isso, pois se diz que Adão deu nome aos animais que Deus lhe trazia (Gênesis II, 19-20)um belo mito para explicar o porquê dos nomes das coisas e o domínio do ser humano sobre a natureza: quem conhece, nome, e se nome, tem poder. Estando pois em disputa com outras potências coloniais pela posse de um imenso território, Portugal precisava marcar sua presença na região para pleitear sua posse; mas como pôr isso em prática se as populações dominadas não falavam o português e as estruturas administrativas portuguesas eram ausentes? Assim, exigir o uso exclusivo do português como língua da administração, catequese e comércio; transformar os aldeamentos indígenas em vilas, mudando seus nomes, instalando neles o poder temporal por meio de pelourinhos, câmaras municipais, varas de justiça e praças militares; tirar dos jesuítas (autônomos demais para o gosto das autoridades portuguesas da época) o poder religioso e dá-lo a clérigos de outras ordens, vindos de Portugal; tirar também das mãos dos religiosos o ensino (ainda que restrito) e passá-lo a leigos a serviço do Estado – todas essas medidas foram postas em prática pela Coroa Portuguesa para assegurar a posse do Grão-Pará.


Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769)

Mas voltemos a Senador José Porfírio. A vila tornou-se município, mais tarde extinto e incorporado a Altamira; novamente emancipado em 1961, recebeu, por decreto do governo estadual e sem consulta aos moradores locais, o nome atual, em homenagem a um de seus ex-prefeitos. A população, porém, jamais aceitou a mudança nem esqueceu o nome antigo e continuou, pelo menos informalmente, a referir-se à localidade como Souzel; os moradores são conhecidos como souzelenses, fato compreensível, em face da facilidade de elocução, oposta à dificuldade de se construir um gentílico derivado de Senador José Porfírio: a forma mais fácil seria porfiriense, talvez pouco adequada, por manter apenas uma parte do nome da cidade.
Segundo a edição eletrônica de 18 de maio de 2011 do jornal santareno O Impacto, o deputado estadual paraense José Megale, motivado pelo fato de a população local não aceitar o nome atual da cidade, propôs a realização de plebiscito, aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Pará, para que os eleitores escolham entre a conservação do nome atual e a retomada do nome antigo e tradicional do município. Trata-se de proposta louvável, apesar de sempre ser mister indagar se não projetos mais importantes para apresentar nas casas de leis. Como muitos outros municípios, Senador José Porfírio carece de infraestrutura, predominam as ruas de terra, grande parte da população mora em palafitas, sem água encanada nem coleta de esgotos... Uma matéria da revista Veja chamou a atenção para as carências daquele e de outros municípios do Pará, as quais estão presentes também em muitas outras partes do Brasil.
Ainda assim, tal proposta de escolha de nome não é comum, pois os governos, no mais das vezes, decidem alterar nomes de cidades, bairros, logradouros etc. de forma discricionária, sem consultar a população do lugar.




Brasão e bandeira do município de Senador José Porfírio, PA

Uma prática bem brasileiraQuando morre um político, artista, esportista ou outro tipo de celebridade, as autoridades apressam-se a dar seu nome a alguma coisa ou lugar, mesmo que esta tenha nome. Em muitos casos a homenagem é merecida, mas inadequada, como ocorreu com o Túnel Daher Elias Cutait, em São Paulo. Era antes Túnel Nove de Julho, pois por meio dele a Avenida Nove de Julho passa por baixo da Avenida Paulista e Parque Tenente Siqueira Campos (popularmente mais conhecido como Parque Trianon, outro belo exemplo de topônimo popular). O fato motivou matéria na revista Veja São Paulo. A mudança, feita na administração da prefeita Marta Suplicy, desagradou a muita gente; não por ser injusta a homenagem àquele médico, mas porque os veteranos, os estudiosos e os cultores da Revolução Paulista de 1932 se sentiram ofendidospodia ter sido dado o nome de Cutait a outro logradouro, conservando-se o nome Nove de Julho. Seja como for, apenas a placa aponta o nome oficial daquele logradouro; para a população paulistana ele continua a ser o Túnel Nove de Julho.
Na mesma administração, há cerca de 10 anos, o Centro Cultural São Paulo, importante complexo com biblioteca, salas de espetáculos, cursos, exposições e cinema, foi rebatizado com o nome de Manabu Mabe, apesar de não ter em seu acervo nenhuma obra deste artista. O arquiteto Nabil Bonduki, que à época era vereador paulistano, votou contra a proposta, sob essa justificativa.
A cidade de São Paulo tem muitos outros exemplos desse tipo. Sobre os três principais rios que cortam a cidade (Tietê, Pinheiros/Jurubatuba e Tamanduateí) um grande número de pontes ligando os bairros entre si ou ao Centro; os nomes tradicionais dessas pontes são os mesmos nomes dos bairros em que estão localizadas ou a que dão acesso:  são as pontes da Vila Maria, do Limão, da Freguesia do Ó, da Casa Verde, do Piqueri, Anhanguera (sobre o rio Tietê); do Jaguaré, da Cidade Universitária, de Pinheiros, da Cidade Jardim, do Morumbi, do Socorro (sobre o rio Pinheiros)...
Talvez alguns desses nomes, anteriormente, não fossem oficiais, dados por meio de documentos, mas era assim que o povo paulistano os conhecia – e ainda os conhece. Um após um foram sendo substituídos, em homenagem, ainda que merecida, a pessoas célebres, geralmente sem consulta à população, sem discussão pública ou no calor da comoção gerada pela morte de alguma celebridade. Assim se deu com a Ponte da Vila Maria (atual Jânio Quadros) e a Ponte Anhanguera (atual Atílio Fontoura), que dá acesso à Rodovia Anhanguera; assim foi também com a Rodovia dos Trabalhadores, atual Ayrton Senna, que dá nome também a um túnel.
Caso diferente foi o que ocorreu com a popularmente conhecida Ponte da Cidade Jardim: localizada no bairro do mesmo nome, sobre ela passa a Avenida Cidade Jardim, e foi inaugurada em 1967, recebendo o nome de Ponte Engenheiro Roberto Zuccolo, em homenagem ao seu calculista, que havia falecido recentemente. Mas parece que o nome não pegou; anos mais tarde surgiu uma polêmica sobre o nome da ponte: ao que parece, a ponte tinha nome oficial, mas não era este o que estava nas placas... Quando foram postas as placas com o nome oficial, muitos reclamaram, por não saberem que era o nome verdadeiro desde a inauguração.
Em 2010 surgiu a proposta de alterar o nome do Parque da Aclimação, conhecidíssima área verde no bairro do mesmo nome, perto do Centro da cidade de São Paulo: um vereador queria pôr nele o nome do pai de um pastor protestante, por ter sido morador do bairro e funcionário de um cemitério local. Obviamente a população não concordou... O jornal O Estado de S. Paulo publicou matéria a respeito da polêmica.
Outro exemplo paulistano: a estação Ponte Pequena (do Metrô) tinha esse nome por estar localizada no bairro da Ponte Pequena, cujo nome era alusivo a uma antiga ponte que existiu no local; há cerca de 20 anos teve seu nome alterado para estação Armênia, em homenagem à comunidade imigrante armênia, muito numerosa naquele bairro (ao lado da estação se erigiu um monumento alusivo ao genocídio de 1.5000.000 armênios pelos turcos em 1917). Neste caso, trata-se de homenagem justa; mas que dizer das estações que recebem nomes de clubes de futebol, num procedimento totalmente eleitoreiro? Na mesma reportagem da Veja São Paulo, o historiador Hernâni Donato comenta o afã das autoridades brasileiras em mudar nomes já tradicionais: “Imagine se alguém teria coragem de mudar o nome de alguma rua centenária da Inglaterra, Itália ou França”.
Exemplos como estes se multiplicam pelo país. Basta morrer um político ou celebridade muito popular para se prepararem as listas de lugares que possam ser batizados com o nome de sua excelência ou senhoria. Em vários casos a homenagem é justa, mas a questão não é esta. Nenhum partido ou ideologia parece escapar disso: ora os logradouros recebem nomes de líderes populares de esquerda, nacionais ou estrangeiros, como Steve Biko, Luís Carlos Prestes, ou cantores rebeldes como Cazuza; ora morre um governador ou um deputado influente, e seus correligionários, em todos os municípios e estados que governam, apressam-se a pôr seu nome em rodovias, pontes, praças, centros culturais, cidades, bairros etc. Há alguns anos, durante uma polêmica sobre a abertura ou não da Cidade Universitária da USP à população, durante os fins de semana, um jornalista propôs que se desse ao campus do Butantã o nome de um ex-presidente. É tradição da USP dar a seus logradouros internos os nomes de ex-reitores e professores ilustres; mas os admiradores desse medalhão da ciência (e) política querem dar seu nome à universidade toda. Em vários pontos do Brasil, ao lado dos necrológios encomendados, listas extensas de tudo o que pode ser nomeado aguardam apenas, dentro de uma pasta no fundo de uma gaveta (ou num HD), a morte de um figurão para encher com seu nome tudo o que se puder. Quando se trata de nomear o espaço público, os nomes de políticos e outras celebridades seguem à risca o versículo do Gênesis IX, 1: “Multiplicai-vos, e enchei a terra”.
No fim das contas, ao povo cabe apenas aprender os novos nomes de ruas, avenidas, praças, cidades... Seja como for, muitos logradouros e locais públicos continuarão a ser conhecidos por seus nomes antigos, que o povo teimará em manter, por sua facilidade de localização. Por que mexer naquilo que está funcionando? Mas nos casos em que a alteração do nome é inevitável, seria adequado, pelo menos, manter o nome antigo ao lado do novo, perpetuando a história do local e facilitando sua identificação e a localização dos transeuntes.
Santarém – A cidade de Santarém, no Pará, oferece três exemplos muito peculiares de toponímia popular. A Praça do Centenário foi inaugurada em 24 de outubro de 1948, em comemoração ao centenário da elevação de Santarém à categoria de município. É mais conhecida, porém, como Praça São Raimundo, por ter sido construída em frente à igreja do mesmo nome, a qual já existia antes da praça. Já a Praça Barão de Santarém, ao lado da antiga sede da Prefeitura Municipal de Santarém, atual Museu João Fona, é mais conhecida como Praça São Sebastião, pois nela está erguida a igreja de São Sebastião, iniciando-se ali perto, também, a Avenida São Sebastião.
Mas o caso mais curioso é o da popular Praça dos Três Patetas. Foi inaugurada durante o governo do prefeito Elmano de Moura Melo (1969-1971), interventor federal, e recebeu o nome oficial de Praça 31 de Março, para homenagear o regime vigente à época, obviamente. É o que nos conta o escritor santarenense Wilde Dias da Fonseca, segundo o qual a Prefeitura encomendou ao
“escultor Laurimar Leal uma estátua de concreto, com a figura de três soldados (Exército, Marinha e Aeronáutica), e a colocou lá. Mas, o nome de 31 de Março nunca pegou e as pessoas chamavam aquela pracinha de Praça dos Três Poderes no suposto errôneo de que Exército, Marinha e Aeronáutica constituíssem os três poderes. Ora, os três poderes são Legislativo, Executivo e Judiciário, e não Exército, Marinha e Aeronáutica, que são as forças armadas.
Mas sempre há os gozadores... ou os insatisfeitos, que não toleravam o regime militar e, em alusão à estátua dos três soldados colocados como monumento na praça, passaram a apelidá-la de “Praça dos Três Patetas”. O apelido pegou. Não são poucas as pessoas que ainda chamam aquele logradouro de Praça dos Três Patetas, o que não está correto. O nome da praça é mesmo “31 de Março”, pelo menos até agora.
Com a volta do Brasil ao regime democrático, a estátua dos três militares que adornava a pracinha sumiu, ninguém sabe quem a tirou de lá nem para onde a levaram. O conjunto era pesadíssimo, pois era de concreto e as figuras tinham o tamanho natural de um homem.” (FONSECA, Wilde Dias da. Santarém: Logradouros Públicos. Santarém, Pará: Instituto Cultural Boanerges Sena, 2007. pp. 30-31).
Sousel – Voltando, depois de longa digressão, ao ponto de partida deste artigo, que já se vai fazendo longo... Os exemplos acima são bastante eloquentes a respeito da força que tem a influência popular sobre a toponímia: as autoridades mudam os nomes, alteram até mesmo a fisionomia do lugar, mas as designações populares muitas vezes permanecem, sobrepujando os nomes oficiais e garantindo a preservação de fatos históricos que só podem ser compreendidos pelo resgate dos nomes populares e seu contexto. O erudito Câmara Cascudo resumiu todo esse processo numa frase: “O povo conhece seu vocabulário” (ele não se referia diretamente aos topônimos, mas vale, pois estes também são parte do vocabulário).
Se não for assim, como compreender o nome “Praça dos Três Patetas”, em Santarém; como  explicar que a Praça Jorge de Lima, da qual saem as avenidas Lineu de Paula Machado, Francisco Morato, Vital Brasil e Waldemar Ferreira, no bairro do Butantã, em São Paulo, continue, há décadas, a ser conhecida como “Paineira”, senão pelo fato de que já houve uma ou mais paineiras lá?

Aspecto da Praça Jorge de Lima, Butantã, cidade de São Paulo, por volta de fins da década de 1960 (atrás da árvore, ao lado do prédio onde se lê parte do nome "Volkswagen", inicia-se a Av. Francisco Morato): a majestosa paineira desapareceu há cerca de 40 anos, mas ficou sua lembrança, motivando o nome popular do local: "Paineira". Segundo Walter Rossi, a extinta árvore foi inspiração de seu poema "A prece da árvore". (Foto: cortesia de Paulo Speranza.)

Citar mais exemplos seria exaustivo... Apesar de serem inúmeras as demandas da população de Senador José Porfírio, todas elas mais importantes que a mudança do nome do município, merece apoio a proposta de dar ao povo daquela localidade a oportunidade de escolher entre conservar o nome atual ou retomar o antigo nome do município; da mesma forma, as autoridades do Executivo e do Legislativo, nos três níveis da administração, deveriam tomar mais cuidado e mostrar mais respeito pela população, ao propor a mudança do nome de algum logradouro ou localidade. É uma questão de respeito à memória da comunidade.

Este texto foi produzido e postado por meio de softwares livres: sistema operacional Linux Mint 12 “Lisa”; processador de texto LibreOffice 3.4.4; navegador de Internet Mozilla Firefox 9.0.1.
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