quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O samba-enredo da Flor de Vila Dalila, 1988


"Promessa fica na promessa
É hora de despertar
Chega de demagogia
Pra que tanta ironia?
O povo está cansado de esperar!"

Não sou apreciador do carnaval. Não curto desfiles de escolas de samba, nem frequento bailes de carnaval, festas de rua ou coisa parecida; também não costumo assistir aos desfiles transmitidos pela televisão. Mas isto não significa que eu seja contra o carnaval: respeito o gosto alheio.
Porém... desde 1988 tenho memorizada a letra de um samba-enredo. Parece contraditório e inexplicável, mas é verdade. De fato, é contraditório; quanto à explicação, ei-la:
Naquele ano, o Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Flor de Vila Dalila, que havia subido para o grupo de elite do carnaval paulistano no ano anterior, apresentou o samba-enredo “Nova República, me engana que eu gosto”, de autoria de Carlinhos de Pilares e Roberto Laranja. Era um samba de letra ousada, atrevida, que tocava fundo em problemas que o Brasil atravessava na época, quando vivíamos o período conhecido como Nova República e José Sarney era o presidente; já se conheciam o escândalo da ferrovia Norte-Sul, o dos marajás do serviço público, e naquele mesmo ano nova Constituição Federal seria apresentada à Nação. A letra criticava ainda o descaso com os aposentados e as crianças abandonadas, a fúria do Leão (o imposto de renda), a fome, a falta de empregos...
Trata-se de um samba-enredo que destoa dos comumente apresentados pelas escolas de samba, nos quais se fala de belezas naturais, homenageiam-se ícones da cultura popular, visitam-se cidades ou países distantes ou se contam fatos históricos ou mitos.
Esse samba da Flor de Vila Dalila fez sucesso, foi muito executado no rádio, e as pessoas o cantavam, motivo pelo qual eu o ouvia sempre e memorizei; aliás, até hoje gosto dele. O mais curioso, porém, é que essa escola de samba, apesar da popularidade de seu samba-enredo, ficou em último lugar no Grupo Especial, sendo rebaixada, e nunca mais conseguiu retornar ao grupo de elite.
Os adeptos de teorias conspiratórias talvez vejam aqui algo mais do que uma triste coincidência... Será que a escola cutucou onça com vara curta e entrou pelo cano? Não sei, não...
Já eu, apesar de não ser folião, nunca me esqueci do samba de 1988 da Flor de Vila Dalila, e todo ano, no carnaval, lembro-me dele: “Promessa fica na promessa, é hora de despertar...”
Reproduzo abaixo a letra completa do samba-enredo, para recordação dos que o ouviram e resgate de parte de nosso passado.

Grêmio Recreativo, Cultural e Escola de Samba Flor de Vila Dalila
Samba-enredo de 1988 – Carnaval Paulistano
Título: NOVA REPÚBLICA, ME ENGANA QUE EU GOSTO
Autores: Carlinhos de Pilares e Roberto Laranja
Puxadores: Nílton da Flor e Carlinhos de Pilares

Promessa fica na promessa
É hora de despertar
Chega de demagogia
Pra que tanta ironia?
O povo está cansado de esperar!

Pra que cultura,
Se não há emprego?
A fome do País não é segredo

Fabricaram o trem, parou a ferrovia
Falta de verba que o Plenário discutia

Me engana que eu gosto
Reforma agrária, cadê?
O índio está cansado de sofrer

O Leão virou hiena, preocupado com a Nação
Marajá de bolso largo
Nem abala o coração

E o aposentado que merece mais respeito
E o menor abandonado
Sofre com o preconceito

Me arrepia essa tal democracia
Acorda, meu Brasil!

Adendo:
Pesquisando para ajustar algumas informações deste artiguinho, descobri que no mesmo ano de 1988 o GRES Imperatriz Leopoldinense apresentou, no Carnaval do Rio de Janeiro, um samba-enredo com tema parecido, cuja letra reproduzo abaixo.
E não é que a Imperatriz Leopoldinense terminou aquela competição também em ÚLTIMO LUGAR?
É muita coincidência! Seria conspiração?
A sorte da Imperatriz Leopoldinense foi que, naquele ano, decidiu-se que nenhuma escola seria rebaixada, portanto ela continuou no Grupo Especial, sendo campeã no ano seguinte.
"Pegaram leve" com o Carnaval do Rio...


Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense
Samba-enredo de 1988 – Carnaval Carioca
Título: CONTA OUTRA, QUE ESSA FOI BOA

Eu voto pra não esquecer
A vida tem que melhorar
O povo na constituinte
Vai ter mesa farta, sorrir e até cantar 

Quá, quá, quá!
Você caiu, caiu!
É brincadeira
É primeiro de abril (bis)

Eu quero é poder ser marajá
Gozar a vida
Pra vida não vir me gozar (bis)

Disse-me-disse
Na história do Brasil
Fui criança, fui palhaço
E ninguém me assumiu (ô, seu Cabral...)

Cabral, ô, Cabral,
O esquema é de lograr (de lograr)
De 71 com a realeza,
Me mandou uma princesa que fingiu me libertar, me libertar (bis)

Ô ô ô piuí
Piuí, lá vem o trem

A ferrovia é brincadeira de neném (bis)

Santarém, PA, 13/2/2013. Editado em 16/2/2018. Leia e curta também no Wordpress.

Um aspecto da II Guerra Mundial, por Mauro Mota

Nestes últimos dias, marcados pela folia carnavalesca, lembrei-me do poema abaixo, do poeta e jornalista pernambucano Mauro Mota (1911-1984), que foi membro da Academia Brasileira de Letras. Conheci este poema quando eu estava no curso de Letras e considero-o belíssimo, um dos mais belos poemas que se compuseram no Brasil no último século, e sempre o releio.
Longe de ser démodé, é, ao contrário disso, bastante atual; quantas moças não passam por isso todos os dias, e talvez de forma até mais violenta, nas muitas áreas de bases militares ou mesmo zonas de guerra atuais, do Mali ao Afeganistão, da Colômbia à Síria?
E mais: quem disse que o Brasil ficou livre dessa prática depois que os ianques partiram do Nordeste Brasileiro? O processo continua: não são apenas estadunidenses, eles vêm de todos os cantos; já não se trata de homens fardados, mas portando coloridas camisas de estilo havaiano ou caribenho, bermudas do tipo safári, sandálias de turista, óculos escuros da moda – pois nosso calor climático e humano pede tudo isso; nem são só homens, pois o turismo sexual já atrai também mulheres, sem falar no público homossexual.
E nesta época de Carnaval dá-se a explosão dessa prática de exploração, pelo sex appeal de nosso povo, combinado com as praias, o sol eterno, o calor, a descontração, a convivência informal...
Fica a leitura para nossa reflexão.

Mauro Ramos da Mota e Albuquerque (1911-1984)

Boletim sentimental da guerra no Recife
Mauro Mota

Meninas, tristes meninas,
de mão em mão hoje andais.
Sois autênticas heroínas
da guerra, sem ter rivais.
Lutastes na frente interna
com bravura e destemor.
À vitória aliada destes
o sangue do vosso amor.
Por recônditas feridas,
não ganhastes as medalhas,
terminadas as batalhas
de glórias incompreendidas.
Éreis tão boas pequenas.
Éreis pequenas tão boas!
De várias nuanças morenas,
ó filhas de Pernambuco,
da Paraíba e Alagoas.

Tínheis de quinze a vinte anos,
tipos de colegiais,
diante dos americanos,
dos garbosos oficiais,
do segundo time vasto
dos fuzileiros navais
prontos a entregar a vida
para conseguir a paz,
varrer da face do mundo
regimes ditatoriais
e democratizar todas
as terras continentais
a começar pelo sexo
das meninas nacionais.

Iniciou-se então a fase
de convocação e treino
todos os dias na Base.
Ah! com que pressa aprendíeis,
só pela conversa quase!
Dentro de menos de um mês
sabíeis falar inglês.

E os presentes? Os presentes
eram vossa tentação.
Coisas que causavam aqui
inveja e admiração:
bolsas plásticas, a blusa
de alvas rendas do Havaí,
bicicletas "made in USA",
verdes óculos "Ray Ban".
Era um presente de noite
e outro dado de manhã,
verdadeiras maravilhas
da indústria de Tio Sam.

E as promessas? As promessas
eram vossa sedução,
acreditáveis que elas
não eram mentira, não.
Um "Frazer" no aniversário,
passeios de "Constellation",
num pulo alcançar Miami,
almoçar na Casa Branca,
descer a Quinta Avenida,
fazer "piquet" pela Broadway
ver a "première" no Cine
junto dos artistas, com
eles todos na platéia.
Ouvir na "Opera House",
numa noite Toscanini,
na outra noite Lili Pons.

Com tanto "it" e juventude
podíeis testes ganhar,
ser estrelas de Hollywood,
ciúmes de Hedy Lamarr.

Ah! bom tempo em que corríeis,
"pés descalços, braços nus,
atrás das asas ligeiras
das borboletas azuis".
Ó prematuras mulheres,
fostes, na velocidade
dos "jeeps", às "garconières"
da Praia da Piedade.

Quase que se rebentavam
vossos úteros infantis
quando veio o telegrama
da tomada de Paris.

Ingênuas meninas grávidas,
o que é que fostes fazer?
Apertai bem os vestidos
pra família não saber.
Que os indiscretos vizinhos
vos percam também de vista.
Saístes do pediatra
para o ginecologista.

"Babies" saxonizados,
que só mamam vitaminas,
são vossos "babies", meninas,
em vários cantos gerados,
mas "mapples" dos automóveis,
no interior das cantinas,
da praia na branca areia,
em noites sem lua cheia.

Meninas, tristes meninas,
vossos dramas recordai,
quando eles no armistício,
vos disseram "Good bye".
Ouvireis a vida toda
a ressonância do choro
dos vossos filhos sem pai.

Este texto foi produzido e postado por meio de softwares livres: sistema operacional Linux Mint 13 Maya LTS; processador de texto LibreOffice 3.5.3.2; navegador de Internet Mozilla Firefox 13.0.1.
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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Uma notinha sobre tradutibilidade

Com pequenas variações, um comentário que postei no blogue de Carlos Carrion, num artigo dele sobre dificuldades de tradução: http://omniglotbrasil.wordpress.com/2012/12/27/mais-intraduziveis/.

A facilidade e a dificuldade da tradução de textos dependem menos da estrutura das línguas em questão e mais do contexto delas, expresso por seu vocabulário, que expressa a cultura e o ambiente em que os falantes estão imersos.
É possível traduzir A República ou Os Lusíadas na língua xavante ou guarani? Pode ser difícil, trabalhoso, mas não impossível, do ponto de vista da estrutura. O que dificulta mais é o contexto, o conjunto de referências, que precisaria ser criado na cultura dos falantes, transposto para ela, para depois ser expresso em palavras.
Foi o que os missionários jesuítas, por exemplo, fizeram no trabalho de catequese: explicavam ou mostravam os conceitos cristãos e europeus na língua indígena (o tupi, por exemplo), criando nela um conceito e jungindo-o a um termo novo (criado a partir de elementos da própria língua ou importando-o do português) para poder ser ele veiculado por meio daquela língua.
Assim, foi possível falar em “cavalo” (kabaru), “pecado” (tekoa'iba ou angaipaba = "mau procedimento"), “mandamento” (Tupã rekomonhangaba = "aquilo que Tupã quer que se faça"), “cruz” (kurusu ou ybyrá-ioasaba = "paus cruzados"), “igreja” (Tupã roka = "casa de Tupã") etc., conceitos que os tupis não conheciam.
Em geral, o senso comum concebe a tradução como equivalência “palavra por palavra”, como se os termos fossem etiquetas ou rótulos que pudessem ser facilmente trocados por outros: manteiga = burro = butter = butero; se não é possível fazer isso, já então se diz que a palavra não tem tradução em outras línguas. Infla-se o ego linguístico nacional!
Já dizia, e com toda a razão, São Jerônimo, padroeiro dos tradutores: "Deve-se traduzir o sentido, não as palavras".

Santarém, Pará, 4/2/2013. Editado em 9/10/2015.